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Acompanhado do clarinetista Ivan Sacerdote, Caetano Veloso usa seu canto como instrumento em releituras de clássicos do repertório dele

Correio Braziliense
postado em 26/01/2020 04:07
Acompanhado do clarinetista Ivan Sacerdote, Caetano Veloso usa seu canto como instrumento em releituras de clássicos do repertório dele

Há beleza e requinte no encontro de dois instrumentos: a voz de Caetano Veloso e o clarinete de Ivan Sacerdote. Artistas de gerações e formações diferentes, eles juntaram os talentos num álbum em que releem parte da expressiva e extensa obra de um dos mais profícuos e brilhantes criadores da música popular brasileira.

Gravado em 2019, entre fevereiro, no estúdio Ilha dos Sapos, de Carlinhos Brown, em Salvador; e abril, no estúdio Vevo, em Nova York, o CD Caetano Veloso & Ivan Sacerdote tem participações pontuais do violonista César Mendes, de Moreno Veloso, que usa lixa para fazer percussão; e do sambista Mosquito.

O repertório, registrado em nove faixas, traz canções que marcaram diferentes fases da obra do tropicalista: os clássicos Trilhos urbanos (1979), Minha voz, minha vida (1982), O ciúme (1987) e Desde que o samba é samba (1993) — esta composta em parceria com Gilberto Gil. A elas, se juntam Onde o Rio é mais baiano (1994), feito para a Mangueira; e as digamos, Lado B, Peter Gast (1983), Manhatã (1997) e Aquele frevo axé (1998).

Na prática, o disco é o climax de uma história iniciada no verão de 2018, quando Caetano ouviu Sacerdote tocar Futuros Amantes, de Chico Burque, na varanda de seu apartamento, no bairro do Rio Vermelho, em Salvador. O clarinetista havia ido até ali na companhia do artista baiano Magari Lord, amigo de ambos.

Sobre aquele momento, Caetano comentaria: “Ivan revela-se, a cada toque, a cada contraponto, a cada intervenção, um Sacerdote da elegância na música”. Impressionado com a sofisticada sonoridade criada pelo instrumentista, um ano depois, gravaram algumas canções em Salvador. Incentivados pela empresária Paula Lavigne, foi feito um EP. “Gravamos tudo numa tarde e sem playback, exceto minha parceria com Cezar Mendes, Aquele frevo axé, em que o autor da melodia toca violão e Moreno Veloso toca lixa”, conta.

Dois meses depois, houve o complemento do repertório. “Juntamos as cinco canções captadas no ritmo do Festival da Bahia de Todos os Santos, às que se deram em Nova York, no estúdio Vevo, onde nossa relação musical pareceu milagrosa”, destaca Caetano. “O carioca Mosquito uniu-se brevemente a nós dois para a afirmação em Onde o Rio é mais baiano e Desde que o samba é samba”, acrescenta.

Embora seja carioca, Ivan Sacerdote, filho de um militar nascido em Santo Amaro da Purificação (terra natal de Caetano), vive na Bahia. Aos 18 anos, matriculou-se no curso de bacharel em clarinete na Universidade Federal da Bahia; e, aos 20, iniciou a carreira musical tocando em filarmônicas e participando, como solista, de rodas de choro, nas quais se apaixonou pela improvisação. Em seguida, na Europa, descobriu o jazz, ouvindo discos de João Gilberto. Ao retornar ao Brasil, Sacerdote foi convidado por Rosa Passos par integrar a banda dela.

O show de estreia do Caetano Veloso & Ivan Sacerdote será em 8 e 9 de fevereiro, no Teatro Castro Alves, em Salvador. Depois do carnaval, os artistas sairão em turnê por outras cidades brasileiras. É muito provável que Brasília esteja no roteiro, entre marco e abril, no auditório master do Centro de Convenções Ulysses Guimarães.




Entrevista/ Caetano Veloso


No seu entendimento, o que Ivan Sacerdote  acrescentou à sua música?
Ivan trouxe música à minha música. Como é figura nova da cena instrumental brasileira, ele aproximou minhas canções a esse mundo. Acho sempre mais bonito quando ele está tocando do que quando eu canto. Na verdade, não sou bom de cantar em estúdio.


Parte das gravações foi feita no estúdio Ilha dos Sapos, de Carlinhos Brown, em Salvador; e outra, no estúdio Vevo, em Nova York. Por que quis assim?
Não quis. Aconteceu. Paulinha (Paula Lavigne) sugeriu que gravássemos alguma coisa no Ilha dos Sapos e, como ficou bem impressionada com o resultado, fez algum acerto com a Vevo.


A escolha do repertório obedeceu a algum critério?
Primeiro, ouvi Ivan tocando Futuros amantes, de Chico, com Seu Jorge, na varanda aqui de casa, em Salvador, e fiquei maravilhado. Paulinha, entusiasmada com os talentos que via aparecer na Bahia, quis gravar Ivan. Ele próprio sugeriu canções minhas: Peter Gast, Trilhos Urbanos e O ciúme. Paulinha achou que, ali, se esboçava um EP de Ivan só com músicas minhas. Eu ainda insisti em Futuros amantes, mas como o resto era todo meu, decidiu-se que gravaríamos só canções minhas. Eu quis gravar Manhantã (que, infelizmente, cantei meio mal) e Tom, meu filho, pediu que incluíssemos Você não gosta de mim. Esse tipo de escolha não configura um critério. Mas o valor musical que Ivan via em canções minhas foi o norte.


Em que fase está a produção das canções para um novo disco de inéditas?
Essas coisas a gente nunca sabe ao certo. Quero gravar a música que fiz pra Céu, Pardo. E comecei a compor umas outras, das quais só uma parece pronta. Mesmo essa não tem forma definitiva. O gozado é que há umas três ou quatro outras, mais para inacabadas.


Que visão tem das escolhas do governo ao indicar pessoas sem a devida qualificação para a área da cultura?
Meu candidato para a eleição de 2018 foi Ciro Gomes. Como ele não foi para o segundo turno, votei em Fernando Haddad. Então, o grupo que ganhou as eleições não é aquele com quem tenho identificação. Todas as escolhas para a área de cultura e educação me pareceram sinistras. Também não entendo o que escreve o chanceler. Nem acredito no catecismo liberal da equipe econômica.




Caetano Veloso & Ivan Sacerdote 
Lançamento da Universal Music, 9 faixas. Disponível em todas as plataformas digitais.




Entrevista/ Ivan Sacerdote


Você tem formação acadêmica, tocou em orquestra sinfônica e se apaixonou pelo jazz ouvindo João Gilberto. Como foi chegar foi à MPB pelas mãos da baiana-brasiliense Rosa Passos?
Rosa Passos foi a artista responsável por legitimar meu trabalho como clarinetista para o mundo da música. Eu tinha 25 anos e havia acabado de retornar de uma temporada de dois anos fora do Brasil. Vinha de uma fase de muitos estudos e poucos objetivos profissionais. Rosa Passos apareceu na minha vida quando eu justamente precisava começar a encarar minha carreira com a mesma seriedade e foco que levava os estudos. Rosa viu uma canja minha no show de um cantor de Salvador (Alexandre Leão). Na mesma hora, me convidou para fazer parte de seu grupo e tocar no Teatro Castro Alves no outro dia. Aguentei a pressão e encarei os músicos da banda, grandes instrumentistas brasileiros, Lula Galvão, Jorge Helder, Fábio Torres, Paulo Paulelli e Celso de Almeida.


Sentiu-se inseguro?
Não me considerava preparado ,mas Rosa é meio visionária, enxerga o potencial de músicos e os coloca à prova.Tive a sorte de constituir uma relação muito carinhosa com ela, que sempre teve a paciência de ensinar a tratar a música brasileira com ousadia e zelo. Também me ensinou muito sobre repertório de Ary Barroso, Dorival Caymmi, Tito Madi, Jhonny Alf, João Donato, Noel Rosa e Cartola. Rosa faz qualquer música se tornar preciosa, é quase um milagre. Talvez esse mérito de ser comparada a João Gilberto seja por causa da excelência da voz e violão, pelo repertório e por ser baiana, é claro. Tais qualidades em comum me fazem enxergar a Bahia como um lugar capaz de produzir música de nível internacional, dotada de excelência e conectada fortemente com nossas raízes.


Como reagiu ao receber o convite para realizar este projeto com Caetano?
Foi uma surpresa muito boa receber o convite de Paula Lavigne. Ela foi a idealizadora desse projeto. Enxergou potencial em um duo que nunca teve pretensões de gravar ou encarar os palcos. Era uma atmosfera de diversão, naqueles hiatos de verão onde os músicos descansam tocando em momentos informais. Férias de músico são assim, não somos diferentes. A partir do convite, passei a encarar esse projeto com grande honra e responsabilidade. Representar a música instrumental brasileira em um diálogo direto com uma grande figura da MPB é uma tarefa que requer muito foco e concentração.


Que avaliação faz do seu desempenho tocando — gravando — com um ícone da música popular brasileira?
No disco, eu procuro aplicar um pouco de cada vivência que tive nos últimos anos, sempre com o filtro de servir à música de Caetano. O fio condutor é esse. É importante ressaltar que, nesse trabalho, não executo somente a improvisação jazzística. Essa abordagem está mais presente em Peter Gast e Manhatã. Nessas duas faixas, eu busco mais a linguagem de Miles Davis, naquela fase dos épicos improvisos em baladas. Nesses solos que fiz também, tem algo de Charlie Parker, aquele com a doçura e sobriedade do disco Charlie Parker With Strings, de 1950. Também existe muito da improvisação que encontramos no choro, em que uma melodia pode sofrer constantes variações.


Como assim?
O exemplo disso está nas músicas Você não gosta de mim e Minha voz, minha vida em que procuro expor minhas afinidades com esse tipo de improvisação e criar uma ponte para explicar musicalmente o que seriam essas duas abordagens. Já na música O ciúme procurei incorporar um personagem do sertão, mas não aquele das festas, do xote, galope, e forró. Pensei em um trovador, um daqueles poetas populares de feiras, que improvisa no verso e fala de amor. São camas harmônicas escolhendo os melhores intervalos para somar com a interpretação profunda de Caetano. Acho que essa música foi a mais desafiadora para mim, esteticamente falando. Na música Aquele Frevo Axé, com Cézar Mendes ao violão, é o mais próximo que eu consegui chegar no meu toque para massagear minha devoção a João Gilberto.


Pretende, após a turnê do Caetano Veloso & Ivan Sacerdote, realizar trabalhos solo?
Minha produção musical precisa existir para que as coisas se mantenham em ordem na cabeça. Gosto de ter ideias e ir para o estúdio experimentar. Tenho músicos parceiros de Salvador e sempre estamos em contato para esses encontros. Amo compor, arranjar e improvisar. Acho que isso alimenta o trabalho com Caetano. Também atuo como educador e produtor. São tantas coisas que um instrumentista precisa fazer para sobreviver hoje em dia. Precisamos fazer de tudo um pouco. Tentarei, na medida do possível, conciliar tudo isso e o trabalho com Caetano, mas, logicamente, agora é foco total nos shows e em colher os frutos dessas gravações.






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