Correio Braziliense
postado em 01/02/2020 06:05
Durante 27 anos de mandato como deputado, Jair Bolsonaro só aprovou dois projetos de lei e conseguiu três dos 512 votos quando se candidatou a presidente da Câmara em 2017. Em uma primeira mirada, nada indicava que ele sairia vencedor da mais polarizada eleição para a Presidência da República. Mas, com o instinto de repórter, Thaís Oyama percebeu que as redes sociais estavam mudando a maneira de fazer política no país e que Bolsonaro tinha chances reais de ganhar a eleição.
Por isso, em outubro de 2018, ela decidiu escrever um livro sobre Bolsonaro. As crises, os segredos, as intrigas, as paranoias, as ideias fixas, a relação com o STF, a participação dos filhos nas questões republicanas, o papel da redes sociais, os gurus do ódio, as ameaças de golpe, as alianças e os recuos com os militares.
Os temas relevantes não escapam de Tormenta (Ed. Cia das Letras), livro da jornalista Thaís Oyama sobre o primeiro ano do governo Bolsonaro. A narrativa é resultado de um paciente trabalho de apuração dos bastidores e compõe painel revelador sobre um momento de grandes transformações na história política do país.
Em vídeo transmitido no Facebook, o presidente Jair Bolsonaro criticou Thaís: “A nossa imprensa tem medo da verdade. Deturpam o tempo todo. Mentem descaradamente. Trabalham contra a democracia, como o livro dessa japonesa, que eu não sei o que faz no Brasil”. Talvez Bolsonaro tenha contribuído, involuntariamente, para a divulgação do livro.
Thaís é brasileira, neta de japoneses e não considera que o jornalismo esteja em extinção, como insinuou o presidente em outro pronunciamento: “E tenho certeza de também que o jornalismo profissional irá durar bem mais que o governo Bolsonaro”. Nesta entrevista ao Correio, Thaís fala sobre alguns dos principais temas abordados
pelo livro.
pelo livro.
Como explica o sucesso de Bolsonaro e de outros parlamentares que nunca se destacaram antes na vida política, com a internet?
Bolsonaro está onde sempre esteve. Pensando do mesmo jeito e falando as mesmas coisas, só que agora na condição de presidente da República e não mais de um deputado da cota folclórica da Câmara. O que penso que ocorreu foi que as quase duas décadas de governo de esquerda abriram alas para o discurso da direita. O fim da era petista pedia um capítulo novo, e o bolsonarismo — com o discurso de endurecimento do combate à criminalidade, de intolerância à corrupção e contrário à “velha política”—foi uma resposta a essa demanda. Bolsonaro viu passar o cavalo encilhado e montou nele na hora certa.
Que temas de Bolsonaro fazem mais sucesso e angaria seguidores?
A agência Bites fez um levantamento com exclusividade para o livro mostrando que os momentos em que Bolsonaro mais amplia o seu número de seguidores têm a ver com três tipos de posts. Aqueles em que ele fala mal da imprensa, em que fala mal da esquerda e em que fala bem do ministro Sergio Moro. Não por acaso, sempre que precisa, o presidente lança mão de um desses recursos. Também fazem sucesso os posts em que ele anuncia ou defende medidas que têm relação direta com o cotidiano das pessoas, como a abolição dos radares nas estradas, o fim do horário de verão e a diminuição de impostos para compras de celulares (coisa que nunca foi colocada em prática, mas que ele chegou a anunciar, com grande sucesso nas redes). Bolsonaro é, como já disse o Hélio Schwartsman, colunista da Folha de S. Paulo, o “presidente das pequenas coisas”. Gostei muito dessa expressão e tomei emprestado como título de um dos capítulos.
Em que o ministro Sergio Moro cumpriu o papel de salvaguarda de que o governo Bolsonaro não ultrapassaria a linha da inconstitucionalidade no primeiro ano de governo?
Penso que o ministro tem conseguido, com muito esforço, manter essa postura. Até onde consegui apurar, ele não se dobrou a nenhum pedido de membros do governo para que ultrapassasse essa linha. No livro, relato ao menos um caso em que o presidente ficou claramente insatisfeito com o fato de o ministro se recusar a agir como advogado do governo. Mas as coisas parecem que estão ficando cada vez mais difíceis para Moro. Minha impressão é de que em breve ele não terá outra saída a não ser pedir o chapéu. Neste caso, Bolsonaro perderá mais do que Moro.
Na vida política não existem adversários, existem inimigos. Como o presidente Bolsonaro exerce essa convicção?
O presidente, como descreveu uma pessoa próxima, tem raciocínio binário. Você está com ele ou contra ele, não existe meio- termo, não existe concordância parcial nem meia discordância. Quem não fecha 100% com suas escolhas e convicções é mais que um adversário, é um inimigo. O exercício do poder mostrou a Bolsonaro que essa inflexibilidade pode inviabilizar seu governo. Vejo que essa constatação causa uma grande angústia para o presidente. Na cabeça dele, ele se encontra emparedado entre as forças da “velha política” e suas convicções, que a seu ver, são as únicas corretas.
No livro, você afirma que, a partir da crise de maio, houve a ameaça de uma intervenção militar. Até que ponto é verdadeira a versão de que o ministro Dias Tóffoli impediu uma intervenção militar?
Na verdade, são duas coisas diferentes. O que eu constatei foi que, no auge da crise, houve gente dentro do Palácio do Planalto, incluindo um general, que defendeu abertamente o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. Outra questão paralela foi a atuação do ministro Dias Toffoli nessa crise de maio. Mostro no livro que ele disseminou a versão de que teria impedido uma intervenção militar cujo articulador seria o vice-presidente, Hamilton Mourão. Investi muito nessa apuração e não obtive um único indício de que isso de fato ocorreu. Não sei que motivos levaram o presidente do Supremo a dizer o que disse, é uma questão a ser perguntada a ele — eu tentei, mas ele não quis responder. Sobre a relação de Bolsonaro com os militares, ela esfriou bastante em relação ao início do governo, quando os generais do Planalto eram apontados como seus mais influentes conselheiros. Sobre o general Hamilton Mourão, a relação de Bolsonaro com ele sempre foi da mais irrestrita desconfiança. E continua a ser. O presidente desconfia que o vice almejou tomar seu lugar e até que o espiona.
A que projeto corresponde ser contra a educação, a ciência, o meio ambiente e a cultura?
No caso do presidente, há pelo menos três décadas ele tem convicções públicas e notórias sobre temas dessas três áreas. E como já disse, ele não recuou um centímetro delas, mesmo depois de passar de deputado a presidente. O que houve de mais nocivo, na minha opinião, é que ele se cercou e deu poder a uma tropa que cultiva o fanatismo e o obscurantismo e que encontrou neste governo um palco para a exibição de suas ideias obsessivas — o que inclui a demonização de Paulo Freire, de todas as ONGs e das políticas identitárias.
Como recebeu as críticas do presidente Bolsonaro a seu livro?
Em relação ao comentário do presidente, aliás, equivocado, sobre a minha nacionalidade — sou brasileira, neta de imigrantes japoneses— sei que isso ofendeu alguns nikkeys e fico triste por isso. Mas no que diz respeito a mim, posso dizer que fiquei até satisfeita, já que se a ideia do presidente era desqualificar o livro, o fato de ele ter recorrido a um argumento dessa natureza, comprova que o meu trabalho está correto e que ele não encontrou nenhum bom argumento para criticá-lo.
Você acredita que o jornalismo tem ainda papel importante a desempenhar na democracia brasileira ou o jornalista é uma espécie em extinção, como disse o presidente Bolsonaro?
Não tenho dúvidas de que o jornalismo profissional é uma ferramenta indispensável para vigiar e apontar os desmandos das administrações públicas e, portanto, tem um papel fundamental na manutenção da democracia. E tenho certeza também de que o jornalismo profissional irá durar bem mais que o governo Bolsonaro.
Tormenta — O governo Bolsonaro: Crises, intrigas e segredos
De Thaís Oyama/Ed. Cia das. Letras. 267 páginas
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