Correio Braziliense
postado em 02/02/2020 04:29
Distante da reprodução de padrões, o lugar da mulher no carnaval aproxima-se do protagonismo criativo. Seja no comando de blocos, de bandas, de vocais, de percussão, seja puxando a alegria na pista, a força feminina tem se tornado uma presença cada vez mais forte e ativista. Além de uma série de reivindicações —ontra o machismo, o assédio, a homofobia —, elas celebram a potência do encontro feminino.
Há sete anos, o Essa Boquinha Eu Já Beijei vê o carnaval como uma manifestação política. Com um repertório repleto de sonoridade brasileira, indo do samba ao afoxé, e entoado por vozes conhecidas no cenário local, o bloco reuniu, em 2019, 40 mil pessoas e fez da farra conscientização. “Temos orgulho em ser um dos maiores blocos do Distrito Federal, composto, criado e feito por mulheres. O nascimento do Essa Boquinha Eu Já Beijei veio exatamente dessa necessidade, extrema e direta, de ocupar espaços e de impor respeito aos nossos corpos e às nossas identidades. A gente não escolhe só o carnaval para pautar questões como o machismo, a misoginia, o racismo e a LGBTfobia. Essa é uma briga fomentada durante o ano inteiro, por todas nós. É uma construção em que todos ganham, o bloco, o governo, a população. Sobretudo em um momento em que a cultura, a alegria e a liberdade vêm sendo reiteradamente atacados”, afirma Patrícia Egito, uma das fundadoras do bloco.
Para este ano, a iniciativa propõe algumas mudanças. Além de um manual do folião que será divulgado nas redes sociais com informações sobre a importância do autocuidado e da redução de danos como se hidratar, evitar se isolar de amigos, guardar celular em local seguro, gritar a palavra “agressor” para facilitar que o bloco tenha conhecimento de qualquer conflito que possa ocorrer, a produção instrui o público a não usar determinadas fantasias para minimizar ou fazer apropriação de outras culturas. Também com o propósito de fortalecer e intensificar o discurso de resistência e luta feminina, o bloco mudou a identidade visual e eliminou do repertório músicas machistas, misóginas, racistas e homofóbicas.
Outra novidade anunciada para o carnaval 2020 é a participação da brasiliense Ellen Oléria e da percussionista LanLan. “O bloco vem suprir essa necessidade de nos organizarmos, nos fortalecermos e de provocarmos esse reconhecimento em relação aos nossos talentos e potencialidades. As mulheres continuam sendo invisibilizadas no meio artístico e sofremos com a ausência de espaços em muitos contextos, com menos convites, sets mais curtos e remunerações inferiores, o que não tem nada a ver com nossa capacidade, potencial, talento e profissionalismo, mas com uma estrutura pautada pelo patriarcado e pelo machismo”, diz Mariana Miranda, outra fundadora da iniciativa carnavalesca. “O carnaval é um momento oportuno para tocar nesses assuntos por toda a carga histórica e de resistência que ele carrega. Fora que não há nenhuma outra data em que os brasileiros ocupem os espaços públicos de forma tão significativa e orgânica. Também consideramos que a alegria é um ato político. As vivências de corpos dissidentes, que pra muitos não deveriam existir, de forma alegre e festiva, é um ato político.”
Uma das vozes que integram o Essa Boquinha Eu Já Beijei, mas que também está à frente do grupo Contém Dendê, Letícia Fialho reconhece a responsabilidade de ocupar esse lugar durante a folia. “É uma festa que é a maior manifestação cultural brasileira, mas, ao mesmo tempo, também carrega coisas ruins, assédios, abusos. Nós mulheres, ao tomarmos esse protagonismo, ao comandarmos, fortalecemos o lado de quem vê”, avalia. Pela primeira vez, a banda composta apenas por vozes negras tocará no período da folia - no Bloco das Montadas e no Carnaval do Parque. “Cada uma que vem abre a porta para mais cinco. Durante muito tempo, a mulher esteve em um lugar ornamental no carnaval, no qual não tinha exatamente uma força de trabalho, de criação, no qual eram reproduzidos padrões que oprimem. Hoje, vemos toda essa diversidade de mulheres em vários frontem, a pluralidade de ser mulher artista e mulher foliã.”
Cantora e percussionista do Patubatê, Lirys Catarina sentiu, no início do ano passado, a necessidade de evidenciar a força feminina. Mesmo sob a regência de homens, com a orientação técnica ou prática deles, era possível ter uma frente formada por mulheres. Foi quando surgiu o Patubadelas. “Via mulheres que antes estavam nas linhas de trás, nos tambores, que cantam muito bem, dançam, que têm suas especificidades e vão chegando no fronte, se empoderando não só como aquela mulher que cuida de detalhes, mas explorando sua potência no coletivo, como deusas”, conta Lirys.
Ao descobrir potencialidades que, muitas vezes, nem sabiam que tinham, elas criaram um bloco de mulheres do Patubatê em que dançam, cantam, tocam, compartilham experiências, montam os figurinos. “Ganhamos espaço de fala e começamos a nos colocar de forma a ter voz ativa. Precisamos lembrar que esses espaços estão abertos”, acrescenta a cantora e percussionista. “Dentro do Patubatê me coloco no lugar da generosidade, para fortalecer o movimento, ao mesmo tempo que me vejo em um grande enfrentamento, vejo a gente conquistando espaços. Hoje, sou uma mulher percussionista com a agenda lotada”.
Agora, onde tem festa do Patubatê, tem as meninas do Patubadelas. No pré-carnaval do dia 15, na folia do Bloco da Sereia Sem Pé, em parceria com o festival Móveis Convida, com Alice Caymmi e outras atrações, o bloco de percussão só de mulheres estará presente. Surgido em 2019, o Sereia Sem Pé nasceu também com o propósito de trazer mais representatividade feminina para o palco no carnaval. “A gente acredita que só de as mulheres conseguirem ver outras mulheres em lugares e espaço de representação e destaque, já constroem a autoestima. Ela pode se ver num lugar de poder”, pontua a vocalista e produtora Eli Moura. Além das mulheres no comando da folia e dos bastidores, ela destaca que haverá um bar exclusivo só para mulheres para evitar o assédio, um lugar com terapeutas e mulheres de acolhimento andando pela festa para impedir qualquer tipo de assédio.
Também com um ano de folia brasiliense, o REBU — O Bloco Sapatão levou cinco mil pessoas para o estacionamento 4 do Parque da Cidade no ano passado. “A gente acredita muito na visibilidade de mulheres homossexuais até para discutir o machismo na sociedade e dentro do movimento. Por sermos homossexuais não estamos imunes”, comenta Dayse Hansa, fundadora do bloco. Além de lançar uma banda própria, que reúne gerações distintas e possui um repertório que vai de Roberta Miranda a músicas futuristas, este ano as organizadoras decidiram “amadrinhar” outras iniciativas de mulheres lésbicas e bissexuais com o projeto Coletivo Fora do Armário. “A partir da alegria, queremos refletir sobre as nossas atitudes. É um momento de colocar nossos corpos na rua, mas eles são políticos e vão resistir a qualquer tipo de discriminação”.
Entre os “amadrinhados” está o recém-criado Triângulo das Brejeiras. Fundado por Fernanda Carvalho Vianna e administrado por ela e Mayara Asenjo, Letícia Reis, Beatriz Romani e Amanda Borges, o grupo surgiu de uma necessidade de Fernanda de encontrar pessoas para compartilhar vivências. “Tinha acabado de me assumir bissexual e não tinha amigas para sair, para conhecer o meio, LGBT+, me sentia muito sozinha”, lembra.
Aos poucos, o que começou virtualmente tem se expandido e, além do bloco carnavalesco, as integrantes querem promover rodas de conversas e grupos de apoio. “O carnaval é uma grande visibilidade, uma época de muita festa e muita militância. Um meio para a gente colocar mulheres em cena. Tem muito bloco gay, mas bloco lésbico quase não tem. É importante mostrar a nossa cara e tirar esses estereótipos de que é festa e pode tudo. Vamos aproveitar que está todo mundo junto, reunido para falar de coisas importantes de forma criativa. É festa, mas é luta, é resistência”, afirma Fernanda.
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