Diversão e Arte

Brasiliense escreve livro sobre a poética do diretor Aderbal Freire-Filho

Renata Caldas abre a caixa-preta dos romances-em-cena, estética consagrada pelo diretor cearense

Correio Braziliense
postado em 08/02/2020 06:10
Montagem de 'O púcaro búlgaro', adaptado da ficção de Campos de Carvalho, com direção de Aderbal Freire-Filho

Com o longo subtítulo Um ensaio-reportagem sobre a linguagem teatral desenvolvida pelo diretor e seus atores, o livro sobre os romances-em-cena de Aderbal Freire tem virtudes sobejamente destacadas por Paulo Betti, que assina a orelha, pela pesquisadora da história do teatro brasileiro Tânia Brandão, em esclarecedor prefácio, e pela atriz Camilla Amado, que assina posfácio no qual lamenta não ter feito parte do grupo que fez os romances-em cena, mas se orgulha de ter perdido o cargo de diretora do Gláucio Gill por se posicionar a favor do grupo.

Um dos diretores mais produtivos do teatro brasileiro, Aderbal Freire-Filho também se transforma em personagem das mais interessantes, ao ter sua trajetória de interesse, amizade, paixão, afastamento, reatamento e casamento com o teatro sedutoramente reconstituída pela autora. Nascido em 1941, em Fortaleza, Aderbal tem tenras e ternas memórias de espetáculos de circo-teatro e desde a adolescência se interessou pelos livros de teatro.

Com leveza, o livro de Renata parte da história do menino interessado pelas histórias “menos robustas” contadas em diálogos para chegar ao diretor que, prestes a completar 50 anos de idade, propõe-se a encenar um romance inteiro sem adaptá-lo para a forma dramática, isto é, sem transformá-lo em diálogos.

Entrevistando atores, preparadores de elenco, figurinistas, cenógrafos, etc., Renata reconstitui como Aderbal Freire-Filho o fez não uma, mas três vezes. Primeiro, a partir de um obscuro romance narrado em 3ª pessoa, A mulher carioca aos de 22 anos (1934), de João de Minas (pseudônimo de Ariosto de Colona Morosini Palombo); depois, com um romance português no qual dois narradores falam de um terceiro narrador (O que diz Molero (1977), de Dinis Machado); e, por fim, com O púcaro búlgaro (1964), romance em primeira pessoa de Campos de Carvalho.

A reconstituição profunda de cada peça da trilogia dos romances-em-cena — duas das quais chegou a assistir como jornalista — habilita Renata a fazer uma análise detida sobre os códigos e as armadilhas presentes no desafio de colocar um romance em cena, pelo menos na linha desbravada pelo diretor e por sua equipe. Segundo mostra a autora, uma série de elementos da experiência dos romances-em-cena gerou filhotes e se reproduziu como contos-em-cena e até roteiros-em-cena, em trabalhos do próprio Aderbal, de profissionais que participaram de sua experiência e de terceiros.

Implicações


Iniciado em 2008, com uma bolsa de pesquisa da Funarte, o trabalho de Renata já circulava entre amigos, para comentários críticos, por volta de 2012 e 2013. Vir a lume em 2019/2020 faz pensar no significado político da experiência dos romances-em-cena. Depois de 2016, até Hamlet, “teatro puro” que Aderbal encenou em 2008 com Wagner Moura e Gillray Coutinho, veterano dos romances-em-cena, poderia ser lido como resistência a um golpe de Estado.

Nesse sentido, um capítulo dos mais interessantes é o das “implicações teóricas” da experiência dos romances-em-cena. Renata trabalha a tese de Aderbal sobre o romance-em-cena como síntese — inesperada mas possível — da forma dramática, baseada em Aristóteles, e da forma épica, concebida por Brecht para promover o distanciamento e combater o embotamento da catarse.

Noutro pós-golpe, o de 1964, Augusto Boal — também referência de Renata — sugeriu uma solução de compromisso e conciliação entre Aristóteles e Brecht, a qual não passou despercebida para um Anatol Rosenfeld e, na sequência, foi abordada pelo crítico literário Roberto Schwarz como sendo resultado de uma crítica incompleta ao “populismo”, no ensaio sobre Cultura e Política: 1964-1969.

Cerca de 20 anos depois, o mesmo Schwarz também viria a assinalar a existência de limitações do distanciamento brechtiano como elemento sozinho e suficiente para a negação do embotamento e da obnubilação da consciência crítica — ponto com o qual tende Renata a convergir, me parece. Dos comentários da autora ao instigante quadro sinóptico inscrito na página 269 com as características dramáticas e épicas do romance-em cena, fica a impressão de que a “máquina de pensar” do teatro de Aderbal tem azeite e dialética na medida do que preconizou Brecht.

Para além de todos os ensinamentos que o livro de Renata Caldas deixa para profissionais, estudiosos, professores e estudantes de teatro sobre o romance-em-cena, o interesse humano que a obra desperta pelo conhecimento amplo e profundo do trabalho e da experiência de criação das pessoas que se dedicam ao teatro dignifica e recompensa a sua leitura prazerosa por um público bem mais amplo.

Lunde Braghini é jornalista e mestre em Comunicação (UnB)


Renata Caldas abre a caixa-preta dos romances-em-cena, estética consagrada pelo diretor cearense

O romance-emcena de Aderbal Freire-Filho: Um ensaio-reportagem sobre a linguagem teatral desenvolvida pelo diretor e seus atores
Renata Caldas/Editora Multifoco, 2019, Selo NotaTerapia, 366 página. Preço: R$ 45 (Site: editoramultifoco.com.br)


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