Correio Braziliense
postado em 08/02/2020 04:17
Um dos traços mais admiráveis do temperamento de Dostoiévski é a doçura. Enfrentou o sofrimento quase inenarrável da prisão na Sibéria, mas não perdeu a ternura. Jamais. Viveu entre ladrões, assassinos e vagabundos de toda espécie na katorga, prisão imunda em todos os sentidos, e aguentou isso durante quatro anos.
Escreveu as memórias desse tempo nas Recordações da casa dos mortos (1861-1862), livro que emociona e leva ainda às lágrimas os leitores que guardam humanidade no coração. Pois foi como uma espécie de adendo que, mais tarde, em 1876, Dostoiévski publicou O mujique Márai, a partir de uma lembrança de infância, pequena obra-prima repleta dessa sua qualidade inigualável: a doçura.
Trata-se do seguinte: para não presenciar o espancamento de um prisioneiro bêbado por um grupo de outros seis prisioneiros, Dostoiévski sai correndo feito louco para o pátio e, angustiado, encontra um polonês e preso “político” como ele, que também se recusara a presenciar a briga; este, olhando-o de modo raivoso e rangendo os dentes, disse-lhe que odiava aqueles bandidos. Dostoiévski não gostou.
A fala do polonês deixou-o injuriado — não que ele também não estivesse enojado com a brutalidade dos brigões —, mas ouvir de um estrangeiro palavras de ódio contra os compatriotas foi a gota d’água para o seu nacionalismo.
Ficou muito agitado: “O coração pulsava-me de inquietação e nos meus ouvidos continuavam a zumbir aquelas palavras: ‘Odeio aqueles bandidos.’ Foi aí que “fui perdendo a noção de realidade e, sem dar por isso, afundando-me em recordações.” E veio uma antiga e muito viva lembrança da infância.
Tinha nove anos, estava na propriedade da família que ele tanto amava, passeando sozinho e admirando a natureza com os pequenos animais, as plantas e tudo o que o encantava. Pois foi nesse momento de embevecimento que ouviu alguém gritar: “Vem aí um lobo!”. Saiu em disparada ao encontro do mujique que vira trabalhando ali bem perto; tremendo, agarrou-se a seu casaco, e avisou-o do lobo. O mujique, com toda a calma do mundo, disse-lhe que nada ouvira, que não havia lobo e tratou de acalmá-lo. Colocou o dedo sujo de terra delicadamente em seus lábios, disse que Jesus estava com ele e olhou-o com tanta bondade, com tanta ternura, que ele jamais pôde esquecer esse gesto, esse dia, esse homem bom.
Conversão
Dessa maneira confessa-nos que, com a imagem do mujique Márai, pôde ver com outros olhos os homens da prisão. Foi uma mudança na visão do ser humano e do escritor Dostoiévski. Uma conversão. Ao sair da prisão, fez do homem pobre, simples, rude, explorado — e forte — o símbolo do russo que ele admirava.
Essa lembrança soterrada por vinte anos aflorou, supomos, em razão de Dostoiévski ter revivido um momento de temor, de risco à vida, real ou não: a ameaça do lobo foi ativada, quem sabe, pela hostilidade do polonês fazendo-o correr para junto dos mujiques, representados, inconscientemente, pelo mujique Márai, extraído do poço de sua memória. Essa lembrança repleta de significado nos faz pensar que o mujique Márai desempenhou a função protetora do pai, transferida para a de pai simbólico representante da alma russa, nessa experiência humana de transferir sentimentos, emoções, como defesa psíquica.
Assim, aquele homem bom, cristão, passou mais tarde, talvez, a fazer oposição ao tirano Nicolau I, que o mandou para a prisão bem como a todos os companheiros da katorga. E esses mujiques ganharam a compreensão do jovem Dostoiévski então com 29 anos. (Mas é preciso dizer que tempos depois mudou sua opinião a respeito dos sofridos poloneses...).
Esse nacionalismo que o tomou por completo e por toda a sua existência tornou-se o aspecto fundamental, porém polêmico, de sua vida e obra. E só a leitura atenta pode levar-nos a compreender o autor de obras profundas, imperfeitas mesmo, dada a natureza exaltada de um homem epiléptico que passou por todas as agruras e humilhações que o vício do jogo pode trazer. Mas ninguém criou personagens como as dele.
Segundo o biógrafo e crítico Joseph Frank, foi um certo prisioneiro D. I. Ilínski, parricida, que forneceu ao romancista a trama principal de Os irmãos Karamázov, modelo para a personagem Dmítri; e outro, chamado Áristov, teria fornecido o caráter do libertino Svidrigáilov, de Crime e castigo. Monstros morais que horrorizaram Dostoiévski e fizeram com que ele mergulhasse no lugar mais escuro da alma humana. E nunca mais foi o mesmo. Nem a literatura.
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