Correio Braziliense
postado em 13/02/2020 06:15
De acordo com o site de pesquisas Newzoo, o Brasil é o 13º mercado de games do mundo. Em 2018, 75,7 milhões de jogadores gastaram 1,5 bilhão de dólares em joguinhos, seja para computador, celular ou console. São números importantes. E, nesse universo, Brasília ocupa o quinto lugar no país quando se trata de jogos autorais. Só isso, segundo Saulo Camarotti, sócio da Behold Estúdio e organizador da 18ª Mostra Bring, que ocupa o Cine Brasília no sábado, justifica realizar na cidade uma feira de autores independentes que se dedicam a criar e construir games.
Camarotti começou a realizar a Bring em 2014 como um encontro de desenvolvedores de jogos. A intenção era que o público de Brasília pudesse conhecer a produção local. Nos anos seguintes, ele realizaria várias outras edições em locais variados da cidade. Este ano é a primeira vez que a mostra ocupa o Cine Brasília. “Vai ser bom para encontrar um público novo, de cinema e do audiovisual”, repara. “As produções são autorais, independentes, não é o jogo comercial, como é normalmente conhecido.” Ao todo, dos 40 estúdios existentes na cidade, 20 participam do evento.
A produção autoral e independente é uma das características dos games criados em Brasília. Nessa leva, as temáticas são muito variadas e distantes da ideia de games violentos ou alienantes. São jogos criados, muitas vezes, para contar uma história, falar de um aspecto do ser humano ou de um momento histórico e até de contextos sociais e políticos, quando não artísticos. “Gosto de fazer um paralelo com o cinema”, diz Camarotti. “Até os anos 1920, era bem técnico, até que nos anos 1950, vem com uma pegada mais artística e esquece que aquilo é uma tecnologia. Passa a ser uma nova plataforma de arte. O videogame tem passado por essa transformação e começa agora a se tornar uma plataforma de expressão cultural, e não apenas entretenimento.”
Esses aspectos fazem parte dos jogos apresentados no sábado na Mostra Bring. Em Out of space, vários jogadores tentam conviver numa casa, em harmonia, enquanto buscam resolver problemas que se apresentam. “É quase uma sátira sobre a convivência e as dificuldades que a gente enfrenta ao não dar valor a coisas como, por exemplo, colocar o lixo pra fora de casa”, conta Camarotti. Escravidão é um dos temas dos produtos da Uruca Games, que também aborda o universo folclórico brasileiro e aspectos políticos e sociais da época da escravatura. Marks of slavery coloca o jogador no papel de cuidar de uma resistência de escravos fugitivos. Construir moradias e tenta lutar contra a escravidão no Brasil colônia fazem parte do jogo. Em Kriofobia, o tema é o terror ao acompanhar uma sobrevivente de um pós-guerra confinada em um bunker congelado.
Para entender o cenário
O mercado de games tem crescido no Brasil e ganhado características que vão além das comerciais, mas ainda carece de análises que o levem mais a sério. O editor e jornalista João Varella quis estudar esse cenário e, sobretudo, como os jogos podem ser vistos como arte. No recém-lançado Videogame, a evolução da arte, ele sugere que se deixem de lado as etiquetas e valorações negativas dos games para tentar compreendê-los como espaços de criação artística.
O videogame, o autor acredita, se equipara a outras linguagens como a literatura, os quadrinhos, a dança, o cinema e as artes visuais. “Apesar de haver uma hierarquia na cabeça das pessoas de que uma linguagem é superior à outra”, observa. “Existe uma questão de valoração social que tem que ser considerada. Fora isso, é um desafio pelo qual os quadrinhos e o cinema já passaram. O videogame, por ser a mais nova dessas expressões, ainda está enfrentando resistência.”
Cada capítulo do livro é dedicado à análise de um jogo específico. Na lista, há desde obras antigas, como Pong (1972), Space invaders (1979) e Pacman (1980), até produções mais recentes, caso de Pokémon Go (2016) e Minecraft (2011). “Essa organização veio de livros de história da arte visual. Geralmente, os livros sobre videogames se separam por gerações. Eu quis ir na essência da essência. É um ensaio muito livre, tentando buscar as ferramentas necessárias para entender esse universo”, explica Varella. “Quanto aos jogos escolhidos, são os que entendi que tinham uma importância no sentido de dar um passo além na trajetória do videogame. Pode ser entendido como uma introdução para muita gente.”
Videogame, a evolução da arte
De João Varella. Lote 42, 240 páginas. R$ 50
18ª Mostra Bring
Sábado, a partir das 15h, no Cine Brasília
Entrevista / João Varella
No livro, você chama os games de 10ª arte. Por quê?
É uma linguagem com gênero, subgênero, autores e autoria, e isso é algo que a história da arte valoriza. Isso completa o quadro para ser visto como uma expressão artística. Uma coisa curiosa é que uma parcela dos jogadores não quer que seja visto como arte porque eles acham que jogos com valor artístico deixam de ser jogos e de trazer o que interessa. Há um receio grande porque esse hobby, em alguns momentos da história, foi questionado e até ameaçado. Em diversos momentos, a opinião pública olha para o videogame e vê como uma ameaça aos mais jovens, então isso acaba criando uma resistência.
E qual o papel da interação nessa arte em relação às outras?
Diferentemente do cinema, o videogame é dividido em outras questões envolvendo a jogabilidade, que é o fator que escapa à maioria das pessoas e que talvez seja o mais difícil de se compreender, porque tem como passo essencial à interatividade. Nas artes visuais, existem obras interativas, na literatura também. Agora, no videogame, sem interatividade, não há jogo. É tão importante que é ela que vai determinar se é um gênero ou outro.
Como as artes, de forma geral, influenciam o videogame?
Os games são uma espécie de soma das diversas outras linguagens, tem literatura, porque tem alta quantidade de texto. Tem dramaturgia na interpretação, com os voice actors, tem arquitetura, quando pensamos nas modelagens em 3D. A arte visual está presente o tempo todo e é concebida em estágio inicial dos jogos. E tem a questão de roteiro, que também é um filho da literatura. No fim das contas, se você começar a destrinchar os jogos, vai ver que eles tomam um pouco de cada expressão para criar a sua própria expressividade. O videogame é como se fosse um filho dessas outras linguagens. Ou, se quiser ir pela minha tese, uma evolução.
Jogar sempre teve uma conotação de pecado, como você diz no livro, mas, no caso do videogame, isso também pode ser usado para difundir conhecimento…
Os games podem ser um objeto difusor de cultura, assim como o livro e o filme. Depende do jogo. Eu trabalho em uma editora, então tenho essa vivência próxima com os livros e sei que os livros ainda desfrutam desse patamar de ser a mídia mais elevada de todas, talvez disputando com os museus e o audiovisual. Mas não é por ser livro que é necessariamente bom, existem livros ruins. Assim como a TV: é possível ter experiências estéticas na TV. A gente deveria deixar de lado essa disputa, essa bobagem de olhar torto para quem passou a tarde jogando, e simplesmente avaliar as obras. Aí a discussão tem o potencial de ser mais enriquecedora.
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