Correio Braziliense
postado em 23/02/2020 06:30
Em um passado não tão distante, as pessoas se aglomeravam nas ruas da cidade com confetes, serpentinas e espuma de carnaval, com roupas coloridas e decoradas, geralmente acompanhada de máscaras, para curtir a folia. O ritmo que acompanhava os blocos era bem específico: as marchinhas. Letras provocativas e com certo humor se proliferavam durante as festividades em fevereiro e animavam o público. Era o único momento em que o moralismo da sociedade aceitava que composições desse estilo fossem tocadas, como conta Rodrigo Faour, pesquisador e especialista em história da música.
“Durante um tempo, a música popular era muito rígida. Então, o carnaval era época em que as pessoas podiam falar de coisas na música que não falavam no resto do ano. Podemos observar que, durante o ano, valsa, fox-canção e sambas eram os estilos que tocavam. No carnaval, os compositores falavam mais abertamente da paixão pelas formas de uma mulher, de sensualidade e coisas mais picantes que não eram cabíveis durante o ano”, explica.
A tradição, vinda do teatro de revista, iniciou-se nos anos de 1920 e estourou na década de 1930 por conta de Lamartine Babo e Braguinha (também conhecido como João de Barro), dois compositores que elevaram o patamar das marchinhas representando o cotidiano de cada período do ano. Depois, uma grande turma veio na cola dos dois artistas, e o estilo carnavalesco se espalhou pelo Rio de Janeiro — posteriormente, para o Brasil. Sucessos como Yes, nós temos banana, Alá-lá-ô, Uma andorinha não faz verão, Chiquita bacana e O teu cabelo não nega foram canções que perpetuaram por vários anos de carnaval — durando até a década de 1960.
Dentro das marchinhas, o último grande compositor foi João Roberto Kelly, que lançou Cabeleira do Zezé em 1964. Também foi o autor de Joga a chave, meu amor e Colombina iê iê iê, marchinhas que emplacaram, mas perderam espaço segundo o especialista musical. “João Roberto Kelly foi o último dos moicanos a emplacar marchas no carnaval. Ele teve um revival, nos anos 1970, em uma parceria com Chacrinha, de onde saíram Maria sapatão, Bota a camisinha e o samba Pacotão. Como não tinha mais trabalho de divulgação nas rádios e canais de televisão, as marchinhas caíram em desuso.”
Como dito acima, as marchinhas tentaram adentrar na década de 1970, mas esbarraram na concorrência com os desfiles das escolas de samba, que começaram a ser transmitidos na televisão, ao vivo e em cores, tornando-se um fenômeno nacional. Por conta disso, o samba-enredo, que funcionava apenas na folia do momo, se tornou o principal estilo carioca e do carnaval, como conta Faour.
“O samba-enredo, que nascia e morria no carnaval, começa a ser mais interessante para o resto do Brasil. Os grandes cantores como Elza Soares e Jair Rodrigues começam a regravar os sambas. A marchinha entra em declínio, assim como os sambas que eram feitos especialmente para o carnaval. O samba-enredo começa a ser a música mais importante do carnaval nas décadas de 1970 e 1980, quando chega o axé music.”
Exemplos são Martinho da Vila, que eternizou Aquarela do Brasil, samba-enredo da escola de samba carioca Império Serrano, e Elza Soares, que será homenageada pela Mocidade Independente de Padre Miguel no carnaval carioca deste ano, voz responsável por Bahia de todos os santos, música que levou o Salgueiro ao título na avenida em 1969.
Atualmente, o carnaval é um evento com novas características. As músicas, que disputam o título de hit do verão, são produzidas por grandes artistas midiáticos, como Anitta e Léo Santana. As fantasias são baseadas em fatos que repercutiram nas redes sociais e grandes festivais tomaram conta da folia. Os blocos de rua continuam com os tradicionais desfiles com uma multidão atrás do trio elétrico, mas existem novos adventos, como camarotes e cordões pagos para o público. E, mesmo com tantas mudanças, Faour acredita que ainda há espaço para as antigas tradições de carnaval.
“Em alguns blocos e bailes sempre tocam marchinhas, nem que seja só o instrumental. Mas o politicamente correto foi um tiro forte em cima disso. Quando as marchinhas foram compostas, era uma grande brincadeira, não havia esse peso que se coloca hoje em dia. Vivemos uma época delicada, que atingiu nossa música”, pontua.
O pesquisador musical completa com uma crítica à excessiva fiscalização sobre as composições. “Sou contra o patrulhamento excessivo em cima das músicas de carnaval. Elas são um patrimônio brasileiro, não podemos botar uma carga tão pesada em cima delas. Existem palavras que não são aceitas hoje, mas, na época, eram faladas de maneira não pejorativas. Algumas vezes é uma coisa tão exagerada, que nem os autores pensaram nisso na hora de compor.”
*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira
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