Diversão e Arte

Nelson Motta estreia série sobre canções que marcaram o Brasil

Série será exibida no canal Curta! e tem direção de Roberto Oliveira

Correio Braziliense
postado em 24/02/2020 06:30
Nelson Motta: %u201CNenhum país do mundo tem tanta diversidade musical quanto o Brasil, que reflete a nossa diversidade
Numa dinâmica animada e quente, ao embalo de mais um carnaval, a série de tevê 101 canções que tocaram o Brasil começa a partir de hoje, no canal Curta!, com a análise, entremeada, de vida e obra dos compositores e cantores que formam seleto grupo no universo musical do país. Sob depurado roteiro assinado pelo pesquisador, compositor e produtor musical Nelson Motta (ao lado de Pedro Motta Gueiros), e com direção de Roberto Oliveira, a pretensão da série com 13 programas é a de apresentar “uma trilha sonora da nossa história”, pelo que ressalta Nelson Motta.

Entre as certezas que ele cultiva está a de que “toda a canção conta uma história” e, ao listar uma centena delas, o pesquisador revolve milhares de sentimentos provocados nos ouvintes brasileiros, por mais de século. Vale lembrar que a pesquisa de 101 canções que tocaram o Brasil veio amparada pela produção literária de Nelson Motta que, há três anos, lançou um ótimo livro homônimo ao programa televisivo. A acuidade sonora e as sacadas de contexto histórico são qualidades de Motta; mas a série, como ele conta, foi idealizada pelo diretor Roberto Oliveira. A ilustração visual, igualmente, passou longe dele. “O mérito é do diretor Roberto Oliveira e de seus pesquisadores de imagem, editores, e artistas gráficos que vasculharam acervos e conseguiram resgatar imagens preciosas”, conta.

No miolo, e tendo como ponto de partida o exame da música Ó abre alas (1899), o programa desta segunda (24/02, exibido às 23h30) celebra personalidades como Noel Rosa, Pixinguinha e Synval Silva. Chiquinha Gonzaga (que, ladeada por Joaquim Callado, fundou o choro nacional) desponta como nome de vanguarda e feminismo. Detalhes pessoais, como a coragem de ela expressar o amor por um homem 36 anos mais novo, não passam batidos.

Na série, algumas autorias musicais são contestadas e não falta centelha para polêmicas. Donga, por exemplo, teve um pouco da imagem arranhada ao se arvoar e tomar para si a autoria de Pelo telefone (1916). Para além da ação judicial que garantiu a coautoria de O teu cabelo não nega (1932) para os Irmãos Valença, a música de Lamartine Babo — longe das interpretações “dos patrulheiros da correção (política)” — é vista como “uma ode ao charme da mestiça”.


» Entrevista/Nelson Motta

Nas revisões feitas ao  longo de pesquisas, houve transformação nas suas certezas iniciais? O senhor aderiu a revisionismo?
Nenhuma certeza foi mudada. Pesquisei, sim, velhas listas das “100 mais”. Contaram intuição e experiência. Não há nenhum bloco especial na série (em relação ao livro) e não há qualquer revisionismo: as canções são situadas no tempo de suas criações.

Evolução é uma palavra de ordem na música ou há espaço para retrocessos? Que compartimento, por exemplo, 
ocupam manifestações da ordem do axé e do funk, no seu labirinto fonográfico? 
É impossível haver retrocesso, seria como a terra rodar para o outro lado. O mundo anda para frente, se pior ou melhor é outra história. Sempre fui sincero com meu gosto musical, elitizado só no sentido de buscar o melhor do melhor. Gosto muito de funk, sou fã de Anitta e de Mister Catra, mas o funk carioca é metade som, metade imagem; como toda a música atual. E assim esta ganhando o mundo, como um ritmo irresistivelmente dançante. Criou uma linguagem própria e saiu da favela para o mundo. Gosto muito de samba-reggae e ritmos afro-baianos, mas nem tanto do axé (risos).

De que modo a música se tornou um irrevogável fascínio (e um meio de fazer dinheiro) para o senhor? Que impulsos e estímulos colocaram a música no seu sangue?
Quando tinha 22 anos e ganhei o I Festival Internacional da Canção de 1966 em parceria com Dori Caymmi, houve uma grana que dava para comprar um fusca e meio. Depois, participei por dois anos dos primeiros juris musicais da televisão criticando calouros e veteranos, em uma média de dois programas por semana.

O que deixa o Brasil tão representativo nas múltiplas sonoridades?
A maior qualidade da música brasileira é a sua diversidade. Há muitos ritmos, gêneros, levadas, estilos. Nenhum país do mundo, nem os Estados Unidos, tem tanta diversidade musical, que reflete a nossa diversidade étnica e cultural.

O trânsito junto aos profissionais da música foi capaz de criar estragos (risos)? Dado o senso 
crítico e a objetividade de alguns reparos seus, o senhor detém desafetos no meio?
Jamais. Nunca perdi um amigo por causa de uma notícia ou crítica. Sempre preferi dar espaço para novidades e artistas na sombra. Caetano disse que sou o único crítico musical que fez grande carreira sem esculhambar ninguém…
 
Curiosidades, da série, em alto e bom tom:

Águas de março (1972), de Tom Jobim, devido ao custo salgado para uso de minutos, foi limada da lista. Por impedimentos de Jorge Ben Jor as criações dele também foram descartadas do programa. 

Na elaborada montanha sonora criada pela série, há espaço para trilha sonora “dos alegres e otimistas anos JK” (embaladas por sambas-choros de Tom Jobim), que, na percepção de Motta, contribuíram para “beleza e alegria do mundo”.

Criado em 1947, "o hino popular do Brasil profundo" Asa Branca consagra Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga, dando ao último a pecha de ser “o primeiro popstar brasileiro”, pela definição de Gilberto Gil.

Com perfil de “cantautor”, Dorival Caymmi tem múltiplas presenças no programa. A velocidade das criações é dado que chama a atenção. Saudade da Bahia (1957) foi escrita em uma noite, e tratou-se de “samba confessional sobre perdas (baianas)”, diante das quase duas décadas de partida para o Rio de Janeiro. Na sistematização impressionante de Motta, o tempo de Caymmi é projetado, em extremos: com João Valentão (1953) são contabilizados nove anos para criação da obra, enquanto, em 1947, a criação de Marina (“samba canção com disfarce de machismo”) levou menos de um dia.

O compositor Johnny Alf figura como um dos %u201Cmaiores estilistas da música%u201D

“Negro, pobre e gay”, o compositor Johnny Alf figura como um dos “maiores estilistas da música”, mesmo sem ter alcançado sucesso popular. Motta indica que harmonias jazzísticas e dissonantes de Alf “anteciparam a bossa nova”. Na lista das 101, Ilusão à toa (1961), integrada ao álbum solo Rapaz de bem, é decifrada como “um amor trancado no armário”, à época em que homossexualidade era percebida como “crime previsto pela legislação”. 

Garota de Ipanema (de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, 1963) é dada como uma das cinco mais tocadas em todos os tempos. Motta conta de parte das 21 versões feitas em apenas um ano, comenta da astúcia do produtor Creed Taylor incitar a americanização de The girl from Ipanema (com Astrud Gilberto, “que nem era cantora”) e fala das vitórias da música no Grammy de 1965, ao desbancar Frank Sinatra e até Beatles, em categorias como álbum do ano e gravação do ano.

A devoção intensa a João Gilberto, por parte de Motta, transparece, ao comentar Chega de saudade (1958, por Tom & Vinicius), na mais “radical guinada da música” representada pela bossa nova. Motta lista a chacota do "violão gago" (associado, pejorativamente, a Gilberto), conta da versão “doce e feminina” da suposta falta de voz do mestre (perante modelos da era do rádio) e da decantação da obra, sob arranjo modernizado e com “mínimo de volume”, tudo mérito de João Gilberto.

Nas anedotas que cercam o sucesso de 1957 A flor e o espinho (Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito e Alcides Caminha), Motta conta do estilo “inusitado e rústico” de Nelson (lembrado como ex-soldado da PM) ao dominar o violão apenas com polegar e indicador. 

Além de mostrar a aproximação de Nervos de aço (Lupicínio Rodrigues, 1947) com o entusiasmo de gremistas que entoam a música a cada vitória, Nelson Motta trata de outras trilhas: as do cinema. Empregada no longa Rio, 40 graus — A voz do morro (1955), do carioca Zé Kéti, é associada à “vanguarda na música e no cinema”. Sucesso na telona francesa (em Um homem, uma mulher, de Claude Lelouch) e incluída no álbum Os afro-sambas, Samba da bênção (Vinicius e Baden Powell, 1966), vista como “meio rap, meio oração”, deu mais ênfase à autodefinição de Vinicius, pretendente ao posto de “branco mais preto do Brasil”.

Copacabana (1946), de Braguinha e Alberto Ribeiro, é samba-canção revestido de contestada polêmica: na primeira incursão de Dick Farney numa canção em português, pesou uma ideia de plágio (pela similaridade com I´ll remeber April, usada no filme Cavaleiros da galhofa). Associado à raiz africana, pelo “samba-bop” Chiclete com banana (1959), creditado a Gordurinha e Almira Castilho, o paraibano Jackson do Pandeiro saiu de mãos abanando, nos perrengues da autoria: companheiro de vida de Almira, Jackson e ela estavam filhados à associações de autores diferentes. Sem crédito para ele, portanto.
Dotada de pouca afinidade com o império da bossa, a atual e popular “música de casamentos” Eu sei que vou te amar (1958) passou despercebida, quando da primeira gravação (com Sol Stein e seu Conjunto) e da segunda (por Lenita Bruno). Caetano Veloso (em 1978) e João Gilberto (em 1995) endossaram a subsequente popularidade da canção de Tom Jobim e Vinicius de Moraes.

Segundo Nelson Motta, passado o furacão Chiquinha Gonzaga, Dolores Duran (de músicas “atemporais e viscerais”), com Noite do meu bem (1959), composta com a saúde já frágil de Duran, um mês antes de morrer, cumpriu a missão libertadora de ser a “primeira e única” a romper o clube fechado dos grandes compositores (homens). 
 

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