Correio Braziliense
postado em 25/02/2020 04:19
O romance Mulherzinhas tem muito mais do que as sete vidas do gato de Beth, é resistente igual à força de vontade de Jô em se tornar escritora, bonito igual aos desenhos de Amy e instrutivo como os ensinamentos de Meg. Desde que foi publicada, em 1868, a história das quatro filhas do Dr. March criadas pela escritora Louisa May Alcott conheceu o topo das listas de vendas de livros. Foi assim no final do século 19 e em outros momentos, especialmente quando novas adaptações para filmes chegam aos cinemas. E já foram algumas.
Em 1994, Winona Ryder interpretou Jô em longa de Gillian Armstrong e, em 1987, as irmãs deram vida a uma animação japonesa. As quatro irmãs, de 1933, tem Katharine Hepburn no papel de Jô e Elizabeth Taylor viveu Amy em Quatro destinos, de 1949. No Brasil, o livro virou série realizada pela TV Tupi em 1959. Agora, o romance chega novamente às listas de mais vendidos graças ao Adoráveis mulheres, de Greta Gerwig.
O filme ajudou a arejar o livro, que está entre os mais vendidos dos sites e ganhou pelo menos quatro novas versões no mercado editorial brasileiro. Para quem não leu, é um bom momento para selecionar uma edição e mergulhar no texto delicado e cativante de Louisa May Alcott. Para quem já leu, vale dar uma olhada nos prefácios, análises e ilustrações que acompanham as novas edições.
Uma das mais bonitas é a da Martin Claret, editada em capa dura, embora a recém-lançada pela Penguin Companhia seja a mais completa. Nesta última, em um prefácio surpreendente, a compositora e poeta Patti Smith conta como o livro foi importante para ela. “Talvez nenhum outro livro tenha sido um maior guia para mim”, revela. “Muitos livros maravilhosos me fascinaram, mas, com Mulherzinhas, algo extraordinário aconteceu. Eu me reconheci, como num espelho, naquela menina comprida e teimosa que disputava corridas, rasgava as saias subindo nas árvores, falava gírias e denunciava as afetações sociais”, continua.
No livro, quatro irmãs de classe média baixa tentam se equilibrar entre a escassez, os perigos de uma guerra civil e a ausência do pai, convocado para trabalhar no campo de batalha. Cada uma tem personalidade muito própria e o grande segredo da convivência de temperamentos e aspirações tão diferentes é o amor e a admiração que cultivam entre elas. Amy, a mais nova, é sonhadora e talentosa com o bloco de desenho, enquanto Beth, frágil de saúde, se dedica ao piano e ao voluntariado. Meg, a mais velha, trabalha como professora e Jô é a força que se debruça sobre a escrita.
Mulherzinhas, em muitos aspectos, pode parecer um pouco antiquado hoje por pregar valores cristãos e um tanto maniqueístas, mas ainda é considerado um libelo feminista de uma escritora muito à frente de seu tempo. “A autora é uma feminista progressista numa sociedade ainda mais retrógrada e machista do que a nossa atual, e coloca suas mulheres como protagonistas absolutas de uma história com enorme força feminina, questionamento de liberdades e ternura. O livro é atemporal justamente por tratar de dores, desilusões, valores, angústias, amores, aprendizados, aventuras, desafios com os quais todos conseguem se identificar de certa maneira“, aponta Maryanne Linz, tradutora da edição da José Olympio.
Jô, vista por muitos como um alter ego de Louisa May Alcott, é o avanço em pessoa para aquele final de século 19: escreve para um jornal, não quer casar ou ter filhos, corta os longos cabelos para doar o dinheiro da venda aos necessitados e passa longe das convenções sociais. Louisa foi enfermeira durante a guerra civil dos Estados Unidos e evitou o casamento o quanto pôde. Filha de um educador intelectual cujo círculo de amizades incluía os autores e pensadores Henry David Thoreau, Nathaniel Hawthorne e Ralph Waldo Emerson, cresceu rodeada por ideias nada convencionais para a época. Mulherzinhas foi um sucesso quando publicado e estimulou a autora a escrever uma sequência, publicada originalmente como Good wives.
Boa parte das edições brasileiras trazem os dois volumes, ambos sob o título de Mulherzinhas. Julia Romeu, tradutora da edição da Penguin, vê na história das irmãs uma lição importante. “O romance diz que nós precisamos lidar com as decepções da vida. Tem um capítulo no qual Jo, Meg, Beth, Amy e Laurie dizem quais são os seus castelos no ar. Nenhuma delas consegue exatamente o que quer, mas elas aprendem a ser felizes com o que têm”, repara.
Para Julia, o maior desafio da tradução do romance consistiu em escolher cuidadosamente o vocabulário. Como o livro data do fim do século 19, não poderia ser moderno demais. “Tinha de ser equilibrado com o fato de que as meninas falam de maneira muito natural, nada empolada. Jô até é criticada pelas irmãs por usar várias gírias. O desafio foi encontrar esse equilíbrio”, explica. Maryanne Linz conta que encontrar o tom certo para um clássico responsável por arrebatar milhões de leitores pelo mundo foi bastante difícil. Todo trabalho de tradução, ela lembra, exige adequação ao tom do texto original e ao público ao qual se destina. “Mas, num clássico como esse, é preciso ainda mais cuidado para que o original seja respeitado”, garante. O “desconfiômetro” do tradutor, ela diz, precisa estar afiado e pronto para a pesquisa porque, às vezes, ele vai se deparar com costumes, comportamentos e até mesmo objetos que sequer existem mais.
A escritora Carina Rissi, autora da série Perdida e sucesso entre adolescentes, descobriu o romance depois de assistir ao filme com Winona Ryder, nos anos 1990. Do filme, foi para o livro. “O grande brilho do livro é que é uma história atemporal. O mundo evoluiu tanto, mas, em certos aspectos, pelo menos na luta feminina, a gente parece patinar nas mesmas dificuldades. E acho tão linda essa briga da Jô de querer ser escritora: uma mulher que tenta seguir um caminho diferente sempre encontra dificuldade. Acho muito legal isso de serem quatro mulheres com personalidades distintas. Não existe uma maneira certa de ser mulher”, diz a escritora, que assina a orelha do livro da edição da José Olympio.
»Três perguntas para Júlia Romeu
O que há de tão atraente no romance?
Os personagens são muito reais, o que faz com que a gente consiga se identificar com eles. Além disso, é um livro que consegue fazer rir, fazer chorar e fazer refletir, ora sendo leve, ora profundo. Isso é muito raro e muito especial.
O que ainda é atual em Mulherzinhas para atrair os leitores no século 21?
O livro fala sobre o processo de amadurecimento de quatro meninas (e de um menino também, pois Laurie é um personagem quase tão importante quanto as irmãs). Esse amadurecimento envolve aprender a admitir erros, a lutar contra vícios, a fazer sacrifícios. Isso faz parte da vida de todo mundo e acho que nunca vai deixar de ser um tema relevante.
O que mais te chamou a atenção na maneira como Louisa May Alcott desenvolve a narrativa?
Acho que há uma diferença entre a primeira e a segunda partes do livro. Na primeira, os capítulos existem de maneira mais independente uns dos outros, com cada um relatando um episódio na vida das irmãs. Na segunda, os capítulos formam um todo mais coeso que desenvolve o tema do amadurecimento. Embora a segunda parte deixe uma impressão profunda, eu acho a primeira mais cativante, talvez por ser mais leve e ter tantas cenas memoráveis.
Mulherzinhas
De Louisa May Alcott. Tradução: Diego Raigorodsky. Martin Claret, 680 páginas. R$ 62,43
Mulherzinhas
De Louisa May Alcott. Tradução: Maryanne Linz. José Olympio, 322 páginas. R$ 39,90
Mulherzinhas
De Louisa May Alcott. Tradução: Julia Romeu. Penguin Companhia, 700 páginas. R$ 47,92
Mulherzinhas
De Louisa May Alcott. Tradução: Giu Alonso. Valentina, 464 páginas. R$ 41,90
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