A quaresma da língua
Quaresma? São os 40 dias que vão da quarta-feira
de cinzas até a sexta-feira da Paixão. Para católicos e ortodoxos, o período se destina a penitências. A pessoa faz jejum, priva-se de carne e renuncia a prazeres. No 1º dia da provação, os fiéis vão à igreja. Lá, recebem cinza sobre a cabeça. O padre, então, lhes diz: ‘‘Lembra-te, homem, que és pó e ao pó retornarás’’. Lembra-te também: quaresma se escreve-se com a inicial minúscula.
Roxo, pra que te quero?
As cores dão recados. O branco simboliza a paz. O verde, a esperança. O amarelo, o desespero. E o roxo? Uma das cores litúrgicas na igreja católica, tem a vez no período da quaresma ou nas missas pelos mortos. Para os católicos, a cor que veste os paramentos dos sacerdotes e a decoração das igrejas tem o significado de melancolia e penitência.
Mudez
As letras têm a própria quaresma. Como os religiosos, submetem-se a sacrifícios. As ortodoxas chegam ao extremo. Emudecem. Escrevem-se, mas não se pronunciam. Chamam-se dígrafos. O nome diz tudo. São duas letras, mas um som. Velha, por exemplo, tem cinco letras. Mas quatro fonemas (sons). O lh tem companheiros: ch (chefe), nh (tamanho), sc (consciente), sç (nasça), xc (exceto), rr (acarretar), ss (processo), qu (fraqueza), gu (alguém).
Rebelião
Na língua como na vida, há os dissidentes. “Xô, fundamentalismo”, dizem eles. “Nós queremos falar.” Resultado: nem sempre qu, gu, sc, xc formam dígrafos. O grupo, então, se dissolve. Antes da reforma ortográfica, as rebeldes qu e gu eram indicadas pelo trema. Os dois pontinhos davam um recado: ali estava uma heterodoxa. Por isso o u deve ser pronunciado. O sinal se foi. Mas a insubordinação se mantém. Em frequente, tranquilo, lingueta e linguiça, o número de letras corresponde ao de fonemas.
Mesma escola
O mesmo ocorre com pescar, excluir & cia. insubmissa. Para elas, impera a lei do jogo do bicho. Vale o que está escrito. Os grupos sc e xc deixam de ser dígrafos. Entram na regra geral — um fonema, uma letra. Em suma: ortodoxas e heterodoxas não constituem problema só da língua. A opção delas interfere na pronúncia e na separação silábica. Sobra pra nós.
Adeus, carnaval
Hoje é quarta-feira de cinzas. O dia que despede a festa momesca se escrevem assim mesmo — com inicial pequenina.
Criança tem cada uma
Menino de 4 anos conversa com o pai:
— Pai, decidi que vou casar.— Que ótimo, você tem alguma garota em mente?— Sim… A vovó! Ela me ama, eu amo ela, ela faz comida gostosa e é a melhor contadora de histórias do mundo.— Maravilha! Só temos um pequeno problema.— Qual problema?— Por acaso ela é a minha mãe. Como você pode casar com a minha mãe?— Por que não? Você casou com a minha, ué!
Dose dupla
“DNA e digitais ligam bandidos envolvidos em megarroubos milionários”, escreveu o site do jornal. Leitores ficaram com a pulga atrás da orelha. Por que rr? Por questão de pronúncia. Com um r, a pronúncia muda. Compare caro e carro. A dobradinha tem uma única função — respeitar o jeitinho de dizer. A mesma regra vale para o ss: minissaia, multissistema, macrossolução.
Leitor pergunta
O caderno Cultura do jornal publicou matéria sobre um livro. Mesmo colocando o nome da obra em itálico, a frase ficou confusa: “Isabela Freitas lança o quarto volume da série que ela pretende escrever sobre relacionamentos afetivos. Não se humilha, não vendeu 10 mil exemplares antes de chegar às livrarias há duas semanas”. Concorda?
João Baptista dos Santos, BH
Os jornais têm manuais de redação. Eles orientam os repórteres sobre o emprego de aspas, itálico, negrito, maiúsculas e minúsculas. No caso, o nome do livro seguiu a indicação do periódico. Uma leitura rápida pode confundir. O advérbio não deixa de fazer parte do título e passa a acompanhar o verbo fazer. Ops! Pior a emenda que o soneto. A vírgula separará o sujeito do verbo. É frasecídio.
Recado
“Onde se queimam livros acaba-se por queimar gente.”
Heine
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