Correio Braziliense
postado em 27/02/2020 06:30
Berlim — A última cena do filme Todos os mortos, exibido na competição internacional do Festival de Cinema de Berlim (Berlinale), mostra uma dolorosa realidade: muita coisa mudou, a escravatura terminou há mais de um século, porém, a sociedade brasileira praticamente mantém a mesma estrutura social racista. O filme disputa o Urso de Ouro no festival.
O momento de se mudar tudo, explicou um dos diretores do filme, Caetano Gotardo (o outro é Marco Dutra), passou sem ter se concretizado. Agora, a tendência vai na direção de uma estratificação, lembrando, de certa forma, a África do Sul. Com agravante de uma polarização religiosa entre os evangélicos, consumindo um cristianismo modelado e exportado pelos americanos, e as crenças trazidas da África pelos escravos.
Dez anos depois de terminada a escravatura (1888), a tradicional família Soares se sente perdida, em São Paulo, após a morte de sua última empregada doméstica. Os Soares, que possuíam grandes plantações de café, estão agora à beira da ruína e lutam para se adaptar. Ao mesmo tempo, a família Nascimento, que trabalhava como escrava na fazenda Soares, se vê à deriva em uma sociedade em que não há lugar para negros recém-libertos.
Os personagens do filme são uma senhora idosa acostumada a comandar, sua filha freira, tentada por ideias blasfemas; a irmã pianista, cuja mente é habitada pelo passado sombrio de sua comunidade; e uma ex-escrava, cuja força de vontade a guia em busca de uma vida melhor.
Na entrevista à imprensa, os diretores do filme explicaram sobre o processo criativo que levou à produção do filme.
Podem nos contar qual foi o ponto de partida para o filme?
Marco Dutra — Tudo começou em 2012, escrevi a história com a participação de Caetano. Algumas versões, que se mantiveram no filme, se encontravam nesse primeiro texto, como as duas famílias e as profundas mudanças que ocorreriam nas suas vidas, alguns anos depois da abolição da escravatura e da proclamação da República.
Queríamos retornar a essa época para mostrar as mudanças e analisar se tinham ou não funcionado. Caetano me passou muitas boas sugestões e decidimos que seríamos codiretores do filme. Nos conhecíamos desde 1999 e decidimos que o filme seria nossa primeira realização conjunta.
Caetano Gotardo — Quando começamos a imaginar esse projeto, refletimos sobre a estrutura da nossa sociedade hoje. Era 2012 e, nesses oito anos, essa estrutura não mudou. Nessa época, o Brasil poderia ter tomado outro rumo e organizado a sociedade de maneira diferente. Surgiu a ocasião para isso, mas não foi utilizada. A estrutura da sociedade continuou a mesma.
Portanto, o que nos interessava era uma reflexão sobre a evolução da sociedade brasileira com a abolição dos escravos até os dias de hoje. Há, portanto, épocas que se sobrepõem no filme no nível visual, dramaturgia e música.
Salloma Salomão (autor da trilha sonora) — Acho que esse filme descreve uma nova visão ou maneira de perceber a sociedade brasileira. Uma espécie de reflexo ou espelho do brasileiro, mas igualmente uma projeção dessa sociedade no mundo.
O cinema brasileiro sempre projetou duas imagens ou estereótipos da sociedade brasileira. A primeira é a de que vivemos numa sociedade harmoniosa, a segunda é a de que vivemos numa violenta. Na verdade, tanto uma como a outra são verdadeiras.
O Brasil é um país racista que conhece a coabitação entre as diversas raças. Tudo isso num universo social de grande pobreza e de indigência. O filme descreve um momento crucial da sociedade brasileira de hoje, num momento de caminhos cruzados. Encontramos ainda hoje, no Brasil, elementos componentes da época da escravatura, que fazem parte da vida dos brasileiros.
Como está o cinema brasileiro contemporâneo?
Caetano Gotardo — Existe hoje no Brasil uma tentativa diária para se conter a força expressiva da arte brasileira. Os artistas estão sendo alvos de ataques diretos, de notícias falsas, perseguições pessoais ou perseguições a suas obras e circulação de mentiras.
É muito importante exibir aqui, em Berlim, os filmes brasileiros. É muito importante o cinema brasileiro estar no cenário internacional e inclusive no cenário nacional, porque isso nos dá uma sensação da força que tem a arte brasileira e nos dá energia para lutarmos contra esses ataques cotidianos, inclusive com acenos à censura em certos temas e censura contra artistas.
Nossa presença aqui tem uma força simbólica muito grande, de resistência e de luta, para continuarmos vivendo do nosso trabalho artístico.
Johnny Depp, ator militante
Em Berlim, o ator Johnny Depp surge como um combatente político contra a poluição industrial, que afetou gravemente uma população de pescadores, no Japão, mesmo porque é o ator e produtor do filme Minamata, nome da pequena cidade japonesa onde a poluição por mercúrio causou mortes e afetou crianças, entre 1951 e 1970.
Johnny Depp vive, no filme Minamata, o lendário fotógrafo da antiga revista Life, William Eugene Smith, conhecido por seus cliques durante a Segunda Guerra Mundial e pelas fotos feitas na pequena Minamata, cuja população estava sendo envenenada por uma indústria química local.
Inicialmente, Eugene Smith não queria ir até Minamata, como lhe pedia o editor da revista Life, mas acabou sendo convencido e suas fotos serviram para revelar ao mundo os distúrbios neurológicos causados na população de pescadores japoneses daquela cidade pelos resíduos químicos não tratados de mercúrio lançados nas águas da Baía de Minamata poluindo os peixes, alimentação principal dos moradores.
A poluição tinha começado em 1956, mas foi acobertada pelos dirigentes da cidade até 1961, quando as fotos de Eugene Smith mostraram ao mundo os males causados nas crianças e na população em geral. Em Minamata, Johnny Depp reencontra o engajamento político como ator e como produtor de um filme de denúncia a partir de uma história real.
“Senti imediatamente um estranho fascínio pela experiência de Eugene Smith, por seu compromisso com o trabalho e pelo sacrifício que ele fez”, contou Johnny Depp. “Nunca imaginei que algo tão horrível pudesse acontecer. Como leitor, senti que essa história tinha que ser contada. Eu acho ser necessário se usar o poder da mídia e do cinema para abrir os olhos das pessoas para algo que aconteceu. Temos a sorte de poder honrar a memória dessas pessoas mostrando o que elas viveram. Poder usar o cinema para enviar uma mensagem é para mim um sonho”, acrescentou.
Johnny Depp acentuou também a importância da militância política e do poder coletivo: “Na vida, todos nós temos que enfrentar problemas insuperáveis, como doenças e crises. Mas, no I Ching, existe um belo símbolo a respeito. Você enfrenta essas enormes dificuldades, mas não será capaz de vencê-las lutando sozinho ou gritando. O poder dos pequenos é a ideia de que juntos reconhecemos o problema para combatê-lo pouco a pouco.”
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