Diversão e Arte

Nas trincheiras do cinema

Mesmo com o desmonte de um dos principais setores da cultura brasileira, que gera emprego e visibilidade para o país no exterior, o audiovisual resiste. Entidade que fomenta o setor, Ancine nega que haja crise

Correio Braziliense
postado em 29/02/2020 04:07
Filme Fico te devendo uma carta sobre o Brasil:  passagem por três festivais internacionais

É da capital alemã, em meio à realização do reconhecido 70º Festival de Berlim, que ecoa o recado de Caru Alves de Souza, uma das cineastas brasileiras destacadas em mostra do evento, pela realização do longa-metragem Meu nome é Bagdá: “Acho que a maior mensagem que o filme leva a Berlim é a de que o audiovisual brasileiro tem potência, reconhecimento, qualidade, diversidade e não vai acabar”.

É na mesma corrente que embala a dupla Caetano Gotardo e Marco Dutra (responsável pelo concorrente ao Urso de Ouro, com o filme sobre a perpétua escravidão brasileira, chamado Todos os mortos) e o realizador Matias Mariani. Ele está em Berlim, selecionado pela mostra Panorama, dada a realização de Cidade pássaro, filme detido num olhar sobre imigrantes nigerianos.

“É o festival com o qual mais me identifico. É uma honra incrível ter um filme apresentado nele”, diz Mariani. Outra diretora pronta para despontar no cenário internacional é Carol Benjamin (leia entrevista, ao lado), que, depois de premiada em festival de cinema na Holanda, representará o Brasil na Suécia e na Suíça, com o documentário Fico te devendo uma carta sobre o Brasil, que destaca a militância política da família. Uma forma de mostrar que o cinema mantém-se vigoroso, apesar de tudo.


Ao Correio, Matias Mariani fez um desabafo: “Sinto que a atual crise institucional, o ataque aos direitos civis que estamos vivendo, deixou muito claro (para nós, cineastas) o quão semelhantes são os nossos desafios sociais e estéticos, independentemente da localidade, o que faz com que seja muito natural se procurar um ao outro, criar pontes narrativas que transcendam a nacionalidade”, comenta. Ainda que esteja reluzindo, no exterior, com temas como união entre povos, exame de questões raciais e alinhado a temas políticos e sociais, o cinema nacional, pelo que percebe o diretor tende a minguar.

“Acho que acontecerá uma seca enorme nos próximos anos, fruto do desejo explícito do governo de tentar domar a criação artística. Como cinema domado não é bem cinema, acho que as produções diminuirão, e teremos anos ruins pela frente. Mas, a médio e longo prazo, que o cinema sempre volta mais forte — temos umas das tradições audiovisuais mais antigas do mundo e, neste sentido, somos muito maiores que os líderes desta ou daquela época”, avalia.

As percepções de Mariani engrossam coro na avaliação de grande parte da classe de cinema, mas são negadas por representantes da Agência Nacional do Cinema (Ancine). De acordo com a entidade, não haverá descontinuidade nem interrupção da produção em cinema, uma vez que centenas de projetos estão sendo produzidos com aportes do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) ou com recursos do fomento indireto.


“Hoje, o mercado conta com players privados que continuam produzindo conteúdo sem recursos públicos. Há números expressivos no fomento audiovisual em 2019 realizados via FSA: foram publicados resultados de editais que premiaram 334 projetos de 15 estados e do Distrito Federal com mais de R$ 272 milhões. Para editais que já haviam sido concluídos anteriormente, foram contratados 660 projetos em 27 chamadas públicas, que receberam mais R$ 526 milhões apenas em 2019”, contesta a Ancine, por meio de assessoria.

Apesar dos argumentos da Ancine, o setor critica orientações do governo e dirigismo nos temas a serem desenvolvidos com o apoio da Agência, como restrições para proponentes negros, LGBTs e indígenas. “Não há restrição a nenhum segmento social. A Ancine continuará executando a política pública de fomento ao audiovisual de acordo com a legislação em vigor”, destaca a nota.



Em busca de recursos

A luta para sobreviver e buscar outras fontes de recursos é forte no setor audiovisual. Como o projeto apoiado pelo Ibermedia (fundo que estimula promoção e distribuição de filmes ibero-americanos, criado em 1997), que apoiou a produção do longa Tia Virgínia, de Fabio Meira. A viabilização do longa contou com assessorias de peso junto ao diretor Karim Aïnouz (vencedor da mostra Um Certo Olhar de Cannes, com o longa A vida invisível) e ao dramaturgo argentino Jorge Goldemberg — tudo possibilitado pela participação no Curso de Desarollo Cinematográfico da Fundação Carolina (Madri).

Em Tia Virgínia, estrelado por Vera Holtz, Arlete Salles e Louise Cardoso, o diretor seguiu aprendizado proclamado por Tolstoi — “se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”. “Estou confiante de que a personagem encontrará eco em diversas partes do mundo”, explica Meira, que acrescenta: “O recado do filme vem da capacidade de fazer cinema em situações tão adversas, em levantar uma produção de baixo orçamento com uma equipe e um elenco que se entrega em nome da arte e da cultura de um país prestes a afundar. Nosso recado é que seguiremos remando, fazendo a nossa parte e trabalhando com o amor e afinco que nos caracteriza.”



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