Correio Braziliense
postado em 01/03/2020 04:15
A história da escritora Ana Miranda com Brasília é uma história de lembranças mágicas. Filha de um engenheiro dono de uma construtora que se encantou com a ideia de Juscelino Kubitschek, ela desembarcou na capital aos 7 anos, em 1959, para morar em uma das então recém-construídas casas da W3, na 709 Sul. Como vizinhos, tinha Athos Bulcão e Oscar Niemeyer. Como sonhos, cultivava aqueles que vivia acordada e os que experimentava dormindo, devidamente anotados em um caderninho. Em todos pairava a vontade de ser artista. No quarto que dividia com a irmã e hoje letrista Marlui, se produzia de tudo. “Era um quarto mágico”, lembra a autora de Desmundo e Boca do inferno, em entrevista durante rápida passagem por Brasília para o aniversário da mãe, que completou 102 anos em fevereiro. “De lá saíam música, poemas e livrinhos. Tínhamos uma editora dentro do quarto.”
Em Brasília, Ana começou a escrever poesias, a desenhar e dar forma à alma que se tornaria autora de mais de 30 livros, entre romances adultos e histórias infantis. Depois, os anos a levaram para o Rio de Janeiro e, finalmente, para a Fortaleza natal, onde mora hoje. Na capital cearense, ela escreveu Xica da SIlva — A cinderela negra, com o qual ganhou o prêmio Jabuti, em 2016. Prêmio, aliás, que ganhou duas outras vezes, em 1990 com Boca do inferno, e em 2003, com Dias&Dias.
Os reencontros de Ana, 68 anos, com personagens históricos renderam histórias saborosas em romances que tomam a verdade emprestada para transformá-la em um pequeno delírio delicado. Mas nem sempre a escritora se valeu das palavras para narrar. Formada em artes visuais pelo Instituto Central de Artes da Universidade de Brasília (ICA/UnB), foi no desenho que ela se embrenhou, e, em seguida, no cinema, antes de chegar aos livros. Aos 19 anos, Ana foi convidada para viver a protagonista, ao lado de Jofre Soares, em A faca e o rio, adaptação de romance de Odylo Costa Filho dirigida pelo holandês George Sluizer.
O longa representou o Brasil no Oscar de filme estrangeiro em 1974 e, em 2018, foi incluído na seleção Cannes Classique, durante o festival francês. Foi quando a escritora viveu outro reencontro, com uma figura de sua própria história, mas que também fazia parte da história do cinema. Durante as filmagens de A faca e o rio, Ana e o assistente de direção Theo von de Sande, na época com 23 anos, se apaixonaram e viveram um romance de três meses. Encerradas as filmagens, cada um seguiu seu rumo. Ana chegou a fazer referências a Theo em alguns livros. São dele a imagem do pirata holandês malvado de Boca do inferno e o nome de uma das órfãs de Desmundo, Tareja de Sande. E ele levou de lembrança desse amor de juventude uma rede que mantém até hoje no apartamento em Amsterdam.
Há dois anos, um reencontro colocou o casal novamente no mesmo caminho e, agora, eles se dividem entre a capital holandesa e Fortaleza. “Nunca esquecemos um do outro”, confessa a autora. “Mas voltamos completamente livres, com todas as obrigações humanas cumpridas, de maternidade, profissionais”, conta. “Sem tensões, já estabelecidos, mas com muita energia. Para nós, não há futuro nem passado, e não há tempo a perder”, completa Theo.
Theo fez alguns filmes quando regressou à Holanda, depois de filmar A faca e o rio, mas foi em Los Angeles que fez carreira como diretor de fotografia. Seu nome está nos créditos de mais de 100 filmes, entre ele The Assault, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro em 1986, e Carnival Row, série da Amazon Prime iniciada em 2019. Aos 72 anos, Theo continua a trabalhar em cinema, mas agora divide o tempo entre a Holanda e o Brasil. Los Angeles, ele deixou para trás por razões políticas. O cineasta não gosta da atual configuração política norte-americana. E também está investindo em novas searas.
Para ele, a estrutura de produção do cinema hollywoodiano, na qual trabalhou durante mais de três décadas, está emperrada. Os grandes estúdios precisam convencer investidores a cada novo projeto, enquanto empresas de streaming como Netflix e Amazon Prime Video têm o dinheiro na mão. “A tecnologia da televisão avançou muito mais rápido que a do cinema”, explica Theo. “Há muito mais dinheiro, é uma máquina muito bem organizada. O velho cinema hollywoodiano se tornou dependente, os grandes estúdios são companhias que dependem de outras. É completamente diferente de anos atrás. E Netflix e Amazon é diferente. eles têm o dinheiro. E fazem.”
Theo visitou Brasília pela primeira vez na semana passada, ao acompanhar Ana ao aniversário da mãe centenária. Ficou impressionado com a monumentalidade da cidade e brincou que dá vontade de fotografar. Já Ana trabalha em novo romance histórico, mas não conta quem será o personagem. Ela teme que o protagonista fuja se ela revelá-lo. E o casal se prepara para construir uma casa em uma praia mais afastada daquela em que vivem hoje. Ana brinca que precisa do isolamento para escrever.
“Nunca esquecemos um do outro. Mas voltamos completamente livres, com todas as obrigações humanas cumpridas, de maternidade, profissionais"
Ana Miranda, escritora
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.