Correio Braziliense
postado em 04/03/2020 04:08
Dois filmes importantes, cujos temas seguem atuais: é com essa visão que o diretor Alex Levy-Heller, que comandou o drama nacional Jovens polacas, compara o filme dele, em cartaz, com o premiadíssimo A vida invisível, de Karim Aïnouz,vencedor de prêmio em Cannes. “Os filmes compartilham de temáticas parecidas; é possível dizer que dialogam. Na essência, são díspares, assim como no conceito, na forma e na estética. Adaptei o livro da escritora Esther Regina Largman de forma não linear e explorando os limites da linguagem; o filme do Karim vai por um outro caminho”, opina. Em comum, as fitas sublinham injustiças decorrentes de machismo criminoso.
Sob a ciência do enfoque de um tema forte, a exploração sexual de mulheres no começo do século 20, Alex não encoraja a ideia de que tenha invadido segmento criativo reservado à visão feminina. “O filme traz uma temática judaica, então se vamos falar de lugar de fala, nada como um diretor ou diretora judeu para contar essa história. Não estou aqui como bastião da comunidade judaica, mas era preciso que este tema, que até hoje é um tabu, fosse abordado por judeus”, comenta. Na equipe de produção, em posições-chave, o diretor priorizou ter “mulheres competentes”. “Elas me ajudaram a realizar o filme, e tenho, portanto, tranquilidade quanto a essa questão”, reforça.
É pela atenção dedicada à pesquisa (feita, na tela, por um jornalista interpretado por Emílio Orciollo Netto) em torno de prostituição de mulheres polonesas que o espectador acompanha o enredo de Jovens polacas. Alex Levy-Heller conta que o maior cuidado foi na maneira como retratar as chamadas polacas. “Em vida, já foram muito estigmatizadas, exploradas e rejeitadas, não queria que isso acontecesse novamente em forma de filme. Então, no longa, as polacas aparecem como parte da memória de uma das personagens quando criança. É o olhar de uma criança que transitava entre elas. Busquei inspiração em obras de Matisse, Lebasque, Jan Saudek e Ludwig-Kirchner, para que as mulheres fossem retratadas de forma poética e lúdica, com o respeito e a delicadeza que merecem”, avalia o cineasta.
Para além do amparo de dados pinçados do livro homônimo — “cuja autora me deu a honra de adaptar para o cinema”, como explica Levy-Heller —, a produção se desviou de uma antiga constante em filmes similares: a objetificação das mulheres. “As coisas estão mudando. Grandes artistas sempre foram fascinados pelo corpo feminino. Aparecem em pinturas, esculturas, fotografia, a musa que inspira uma canção... Esse fascínio deve sempre servir à arte em si e não ao fetiche de quem a realiza. Caso contrário, aí já não é arte, é outra coisa”, conclui.
Três perguntas // Ricardo Largman
Quais foram as maiores vitórias no trabalho de pesquisa da autora (que é mãe de Largman)?
De um lado, ela enfrentou e venceu — com muita firmeza, diálogo e, à época, debates públicos — alguns representantes da “ala conservadora” da comunidade judaica brasileira, e especialmente a do Rio de Janeiro, cenário da história e da história. Eles eram contra a produção e o lançamento da obra. Contudo, como historiadora, minha mãe não poderia ignorar esses fatos, fingir que não aconteceram. É, sim, uma “macha negra” (um pecado, como o tráfico de escravas brancas do início do século passado) entre os judeus, mas ela — como eu — acredita que a única forma de evitá-la no presente e no futuro é contando e lembrando esse capítulo triste do nosso passado para as novas gerações. De outro lado, resumir e transformar horas sem fim dedicadas às pesquisas em arquivos de bibliotecas públicas num trabalho consistente e, ao mesmo tempo, literariamente atraente revelou-se uma tarefa hercúlea; uma vitória da perseverança e do talento dela como escritora.
Como leitor, que dados mais te surpreenderam?
As condições desumanas com que as jovens eram tratadas ao chegarem no Brasil. Eram pobres, vindas do extremo frio do Leste Europeu, e não sabiam uma palavra de português. Aliás, soube por um amigo judeu, semanas atrás, a propósito do lançamento do filme, que as “polacas” tinham a sua iniciação sexual no navio, a caminho daqui. Quando li a primeira versão do livro, que ajudei a revisar, me surpreendi muito em saber da quantidade de jovens enganadas pelos “cáftens” (palavra que deu origem à “cafetão”). Eles eram de uma crueldade ímpar. E, como judeu, tudo isso me causou grande revolta.
De alguma forma, houve pioneirismo da escritora na tal luta contra o machismo, hoje em alta?
Não creio. É fato que minha mãe sempre foi — e ainda é, com quase 86 anos — uma mulher combativa. Quando jovem, ainda em Salvador, se aproximou do Partido Comunista e chegou a ser presa, com foto e tudo na capa de um jornal. Mas até onde sei, ela nunca foi exatamente uma feminista. Claro, nunca concordou e jamais concordará com a desigualdade entre os sexos, seja no trabalho, seja no âmbito familiar ou social. Não é, porém, o tipo de causa ou bandeira que ela costuma abraçar. O que ela é contra, homens e mulheres, feministas e machistas, é a ignorância, o discurso vazio, com falta de bom senso, sem base de argumentação.
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