Diversão e Arte

Em livro, Valter Hugo Mãe escreve para público infantojuvenil

Em 'Contos de cães e maus lobos', o escritor traz narrativas carregadas de lirismo pungente

Correio Braziliense
postado em 07/03/2020 06:10
Valter Hugo Mãe: contos em que a moral da história é substituída pela iluminação poética

Valter Hugo Mãe afirma que não sabe escrever para crianças. Considera-se desajeitado para dirigir-se a elas. Queria escrever livros que apenas divertissem, mas também reconhece não ter jeito nenhum apenas para textos que apenas divirtam: “Sou muito romântico, quero melhorar o mundo. Mas melhorar o mundo servindo às crianças uma ética e uma sensibilidade em que acreditamos, é o mesmo que lhe pedirmos que cresçam melhores do que nós”.

As dúvidas de Valter enriquecem os textos que escreveu para crianças e adolescentes. Impedem que resvalem para a simples doutrinação. Mas os receios se revelam infundados na leitura de Contos de cães e maus lobos (Ed.Globo, Coleção Biblioteca Azul), primeiro livro de contos do autor, no qual reúne uma série de narrativas curtas em que reitera a capacidade de dizer palavras essenciais.

Embora sejam dirigidas ao público infantojuvenil, como toda obra de arte verdadeira, as onze narrativas curtas do livro podem ser lidas por leitores de todas as idades. Em A menina que carregava bocadinhos, Valter conta a história de uma garota desvalida que se submete a todas as humilhações ao trabalhar na casa de pessoas ricas, despojando-se até da memória da família: “Lentamente, aprendeu a esquecer-se da própria família, para não lhe sentir a falta, para não carregar incompletudes. Queria estar inteira, como quem resolve passados e abraça o presente sem hesitações. Era para não guardar medos, não alimentar medos. Construía esquecimentos, pensava ela.”

Vive com o sentimento de não ter direito sequer à beleza ou à felicidade como se “fossem indecorosas”. Mas eis que a emergência de um amor inesperado subverte toda a sua vida: “De tudo quanto alguma vez carregara, o amor era o mais difícil de segurar. (…) O amor existia em todas as direções. Ela pressentia isso. Que o amor estava pra lá de qualquer direção”.

Dor de mãe


O menino de água é uma narrativa curta e densa de poesia. Fala da dor de uma mãe que perdeu a criança levada pelo turbilhão de uma onda grande do mar. Ela jura que nunca desistirá de buscá-lo. Nadava sempre no mar: “Nunca secava o corpo porque a água era agora o seu menino”. Mas certo dia começa a juntar jarros em casa, encher de água e encenar uma impossível vingança ao mar.

O tema dos livros é brindado com dois dos melhores contos da coletânea: O rapaz que habitava livros e Bibliotecas. Valter despe os livros do pedantismo intelectual e confere a eles o status de objetos vivos, pulsantes, lúcidos e atilados. “Gostei de colocar a hipótese de os livros serem como bichos”, diz o narrador de O rapaz que habitava livros: “Isso faz deles o que sempre suspeitei: os livros são objetos cardíacos. Pulsam, mudam, têm intenções, prestam atenção. Lidos profundamente, eles estão incrivelmente vivos. Escolhem leitores e entregam mais a uns do que a outros. Têm preferência. São inteligentes e reconhecem a inteligência”.
 
Em 'Contos de cães e maus lobos', o escritor traz narrativas carregadas de lirismo pungente 
 
Os livros são impregnados de uma dimensão existencial. Eles podem esperar eternamente nas estantes, mas só se realizam na relação com o leitor: “Mais tarde, aprendi que os livros acontecem dentro de nós. Claro que eles podem ser bonitos de ver, mas são sobretudo incríveis de pensar”.

A declaração de amor aos livros prossegue em Bibliotecas. São exaltados pela capacidade que proporcionam de viajar: “As bibliotecas deviam ser declaradas da família dos aeroportos, porque são lugares de partir e de chegar. Os livros são parentes diretos dos aviões, dos tapetes voadores ou dos pássaros. Os livros são da família das nuvens e, como elas, sabem tornar-se invisíveis enquanto pairam, como se entrassem dentro do próprio ar, a ver o que existe para depois do que não se vê”.

Bibliotecas assume um tom quase que ensaístico, mas em linguagem poética. A leitura dos livros é um aprendizado para a leitura do mundo. Como disse Jorge Luis Borges, o livro é o único objeto que não é extensão do corpo, mas, sim, da imaginação: “Todos os livros são infinitos. Começam no texto e estendem-se pela imaginação. (...) Se soubermos entender, crescemos também, até nos tornarmos monumentos pessoas. Edifícios humanos de profundo esplendor”.

Ao fim da leitura de Contos de cães e maus lobos, é provável que discordaremos do receio de Valter Hugo no sentido de escrever contos que desejam um mundo melhor. A utopia de uma arte que seja apenas entretenimento talvez seja nociva. A diversão pela diversão tem conduzido à barbárie. Só podemos aspirar a um mundo melhor a partir dos valores nos quais acreditamos.  

Valter dribla, com muita habilidade, as armadilhas do gênero. Escreve fábulas de tramas pungentes, dramáticas, simbólicas e delicadas em que, ao final, não se encontra a clássica lição de moral, mas, sim, a iluminação poética.


Em 'Contos de cães e maus lobos', o escritor traz narrativas carregadas de lirismo pungente 
 
Contos de cães e maus lobos
De Valter Hugo Mãe. Ed. Globo, Biblioteca Azul/90 páginas





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  • Foto: Biblioteca Azul/Reproducao
  • Foto: Biblioteca Azul/Reprodução

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