Diversão e Arte

Ponte para diálogos de personagens extremados agita set de Belmonte

Previsto para estrear em 2021, o longa O pastor e o guerrilheiro remonta três épocas de Brasília para discutir problemas atuais

Correio Braziliense
postado em 10/03/2020 07:13

Retratando épocas distintas, filme O pastor e o guerrilheiro está previsto para 2021

 

A trama se passa em três décadas e mexe com feridas ainda abertas da recente história brasileira. Conta sobre ditadura, militância política, cotas nas universidades, bug do milênio e também religião. O longa O pastor e o guerrilheiro não é só um filme, é a tentativa construção de uma ponte entre pensamentos distintos e antagônicos do povo brasileiro. “O filme fala sobre o diálogo, acho que o país precisa criar pontos de contato, que a gente tem que entender o outro em sua complexidade. O longa fala muito sobre este lugar”, destaca o diretor José Eduardo Belmonte (Carcereiros e Alemão) e conta com os atores César Mello, Johnny Massaro, Julia Dalavia, Cássia Kis, entre outros. A produção é de Nilson Rodrigues.

 

Tudo começa quando a personagem Juliana (Julia Dalavia) encontra um livro com a história de um pastor evangélico e um guerrilheiro. O texto remonta a 1968 e conta a relação entre João (Massaro), um jovem que larga a Universidade de Brasília (UnB) para se juntar à Guerrilha do Araguaia, e Zaqueu (Mello), um evangélico com aspiração de ter uma vida na igreja. O cenário é uma cela nos porões da ditadura. Duas pessoas com ideologias distintas são obrigadas a conviver num cubículo do regime militar. Eles fazem um pacto e marcam um encontro para 1999, na virada do milênio, em Brasília. 

 

“Culturalmente nós temos três grandes problemas no Brasil e em Brasília. Um é lidar com a verdade, ainda há uma dificuldade de se olhar, admitir os próprios erros e superá-los. A gente finge que não tem, a gente vive em uma bolha, sempre viveu, a internet, recentemente, colaborou para aumentar isso”, enfatiza Belmonte. Outro aspecto que o diretor destaca é a dificuldade de ver o semelhante na sua complexidade. “É importante que se comece a ouvir o outro, tentando entender as demandas alheias e partir para um debate, que é quando você está realmente interessado no que o outro fala. Um terceiro ponto é a cultura autoritária, que está introjetada em todos os segmentos da sociedade e é muito complicado isso”, diz Belmonte.

 

Mudanças

 

Brasília tem um espaço especial em O pastor e o guerrilheiro, cenário que por vezes participa como personagem da difícil história dos protagonistas. Sendo retratada em 1968 e 1999, a capital do país sofre mudanças, assim como os personagens.

“Não gravo em Brasília desde 2003. Gravei o documentário do Móveis (Coloniais de Acaju) em 2011, mas foi rápido durou uma semana só”, diz Belmonte, que cresceu na capital e se formou na UnB, um dos cenários do filme. “O longa fala sobre a vida brasiliense, sobre uma época muito específica da cidade, época que ajudou muito a formar a cultura de Brasília, um jeito de ser que é difícil de verbalizar”, completa o diretor.

 

“Brasília está muito presente desde o roteiro do filme, o Zé (Belmonte) é daqui, e sempre deixou claro que a cidade tem uma atmosfera diferente, muito presente no tempo do filme, no tempo dos personagens”, pontua Julia Dalavia. “Eu entendi muita coisa sobre a personagem quando cheguei em Brasília”, completa. “O brasileiro tem essa mania de não querer falar sobre certas coisas, e o filme se propõe a isso. A falar e a olhar para esses assuntos, assim como o céu de Brasília olha para gente”, acrescenta César Mello.

 

Importância necessária

 

“É um filme muito pertinente, muito importante, é um longa que apresenta personagens muito humanos e uma história muito real e possível.”, afirma César Mello em entrevista ao Correio. O ator que perdeu 15kg para o papel de Zaqueu, entende a importância de falar sobre o assunto. “Repassar essas informações e esse sentimento, traz a relevância de estar falando sobre esse período pesado de nossa história, mas, mesmo assim, é uma pena que algumas dessas situações estão de volta. Estamos vendo aquilo que nossos pais viram.”

 

Saiba Mais

 

 

História revisitada

 

O enredo se passa em duas localidades: Brasília e a a região da Guerrilha do Araguaia, em Tocantins. A história pouco contada da presença de ações de grupos armados de esquerda no centro do país é muito mostrada no longa. “A gente devia aos militantes e a todos que participaram da Guerrilha do Araguaia, contar e honrar essa história, ainda mais no momento que a gente está vivendo”, afirma Julia Dalavia. A atriz vive Juliana, uma jovem estudante de sociologia, que luta para que as universidades criem cotas, como as raciais, na virada do milênio. “A narrativa do filme, infelizmente, é muito atual. É bom a gente sempre lembrar do que aconteceu, é um filme muito importante.”

 

Autoritarismo em debate

 

“Dos impactos de tudo que nós vemos no filme para os dias de hoje, pode-se extrair a questão das cotas raciais, que se dá na virada do milênio, da questão de acharmos que o autoritarismo estava definitivamente enterrado no país e hoje vemos que nem tanto, ele está aí de volta. O olhar do estudante e do jovem militante e a participação deles em causas importantes se mostram como coisas permanentes. Muda-se o tempo, mudam-se as pessoas, mudam-se as condições, mas a participação continua a mesma”, diz o produtor Nilson Rodrigues.

 

José Eduardo Belmonte voltou a rodar um longa na capital em que fez história no cinema local 

 

Três perguntas // José Eduardo Belmonte

 

Você cresceu em Brasília e se formou na UnB. Como é voltar à cidade e gravar no campus onde estudou?

 

Num primeiro momento, achei um pouco estranho, tentei não ficar nostálgico. Ainda mais quando você anda na UnB e lembra de uma época na formação da sua vida. Você conhece os lugares e tem história com todos eles. Então foi bom, mas achei que nostalgia era um sentimento que não podia me contaminar. As coisas nunca voltam no mesmo lugar quando você passa por elas. E aí, num segundo momento, me trouxe o sentimento de “nossa que estranho voltar”, mas depois entendi: estou filmando a mesma época para entender o hoje, não para ter uma experiência nostálgica do tempo perdido. Não é essa a minha meta. Esse filme me interessa porque olha para o passado para dizer o motivo dos acontecimentos de hoje. Como a nossa falta de perceber o outro, de ouvir o outro. A nossa comodidade de ficar sempre no próprio universo, nosso próprio espaço, impediu que fizéssemos mais contato, criássemos mais relações.

 

O que tem de Belmonte em O pastor e o guerrilheiro?

 

Acho que quase tudo, por questões familiares e pessoais, eu conheço os universos da história meio que por coincidência. Tenho muita relação com várias partes da história. Ironicamente é um roteiro que tem muito a ver comigo, não veio de mim a ideia, mas me interessava esse momento da história. É bom para que eu possa tentar entender outras questões, agente faz cinema um pouco para isso, entender o outro, avançar nesse lugar.

 

Recentemente você se envolveu em diversas produções diferentes, tem quatro filmes em processo de produção ou pós-produção em 2020, e ainda assinou Carcereiros, em 2019. O Belmonte que estudava da UnB se enxergava chegando aonde você chegou? 

 

É muito irônico, porque quando fiz UnB, jamais imaginei que conseguiria fazer mais de dois longas. Era uma época muito sem dinheiro, época do Collor, a produção de Brasília era um curta a cada dois anos. Jamais pensei em chegar neste lugar onde estou. Parto do princípio que sou um trabalhador comum, um operário. Fiquei muito tempo indo atrás, tentando levantar recursos para as coisas aconteceram e acabou que aconteceram todas ao mesmo tempo. Tenho que estar trabalhando para entender as coisas, águas paradas não movem nada. Sou muito para o jogo, gosto de trabalhar para entender, sou um curioso, gosto da ideia do cinema com a invenção, de descobrir coisas.

 

*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira 

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