Diversão e Arte

''Gosto dos personagens à margem'', diz diretora Sandra Kogut

Premiada diretora traz para Brasília a pré-estreia de 'Três verões', com direito à debate em torno do longa protagonizado por Regina Casé

Correio Braziliense
postado em 12/03/2020 08:15

Sandra Kogut: 'Para se conseguir construir, para se criar um personagem você precisa compreender ele, humanamente. Por mais que você esteja fazendo análise de questão social, prevalece a visão humana da personagem

A diretora Sandra Kogut não tem dúvidas de que o cinema no Brasil tem sido muito “atacado”, estando “tão ameaçado”. Ainda assim, arregaça as mangas e parte para a luta, às vésperas do mais recente filme (Três verões) que construiu com a sempre iluminada capacidade de comunicação da atriz Regina Casé. Hoje, Sandra está em Brasília para debater o filme a ser exibido, em caráter de pré-estreia, no Itaú CasaPark, às 20h. “A gente está lançando o filme com a expectativa de que chegue a muita gente. Cada filme feito, cada festival transcorrido, cada debate e cada lançamento tem demarcado uma vitória para nosso cinema, né?”, observa a diretora no quarto longa da carreira iniciada em 2003, com o documentário Passaporte húngaro.

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Um apanhado de festivais estrangeiros acolheu Três verões, com direito a projeções no Canadá (Toronto), na Turquia, em Cuba (Havana) e em um circuito de várias cidades norte-americanas. “O filme será lançado comercialmente na França com grande estrutura de 50 cópias. Aliás, numa temporada de 10 dias, participei de debates muito bacanas. O longa dialoga com diferentes classes sociais e, em lugares bem distintos, as pessoas se reconhecem na trama”, reforça.

Três verões ancorado no carisma de Regina Casé, que interpreta uma caseira, traz à tona o início da carreira da diretora Sandra Kogut, premiada com longas como Campo Grande (2015) e Mutum (2007). “No final dos anos 1980, eu fazia umas cabines de rua, e convidava anônimos para falar diretamente para a câmera, eram as videocabines que depois se chamaram parabolic people — ali tinha uma pessoa falando como verdadeira dona daquela situação”, conta. Nas entrelinhas do novo filme, a carioca Sandra Kogut encontrou espaço para a valorização do idoso, por meio do personagem de Rogério Fróes.


Você elaborou um filme com isenção ou reforçou existir uma esperança na competência da justiça de punir uma elite que joga contra a população brasileira e o dinheiro público?

Em relação a isso há um pessimismo na história. O Edgar (personagem abonado e corrupto), ainda que com um castigo (na instância judicial), vê que sua sentença não resulta em nada. O assunto do filme, aliás, vai além disso. O filme é um retrato de um Brasil imediatamente antes do que aconteceu em 2018, com as eleições. Mostramos como aquilo preparava as condições para que tudo acontecesse: a subida da extrema direita no Brasil. Os sinais que estavam vindo pela frente — gravitavam todos lá. Ao mesmo tempo, existia uma certa cegueira. Eram os sinais de uma sociedade neoliberal — em que é cada um por si; na qual todo mundo só fala de dinheiro; em que a única coisa boa é você ser considerado patrão. Tudo vira uma mercadoria em potencial —tudo pode ser negociado. Neste sentido, Três verões é bem crítico com relação a tudo isso.

Tratar de personagens de periferia seria como atirar no escuro para alguém como você, da classe mais favorecida?

Para se conseguir construir, para se criar um personagem — antes de mais nada — você precisa compreender ele, humanamente. Por mais que você esteja fazendo análise de questão social — prevalece a visão humana da personagem. Ao longo da minha carreira, os personagens que me interessam de verdade não são aqueles que estão no centro do quadro. Tratei de crianças, de personagens que moram longe dos centros urbanos, tratei de pessoas de idade. Gosto dos personagens que estão ali no cantinho. Estão na margem do quadro e eles sempre me comovem. O olhar deles é mais agudo, eles têm uma riqueza humana. Isso me atrai; consigo entendê-los nessa abordagem. Caso contrário, nem todo o poder de observação do mundo seria suficiente.

Houve medo de a Regina Casé se repetir, num personagem algo similar ao de Que horas ela volta? São visões complementares as tuas e as da Anna Muylaert?

Se você olhar para os personagens, eles são muito diferentes. No Que horas ela volta existia uma empregada submissa, nordestina. E a Madá (de Três verões) está entre dois mundos: ela é a empregada dos patrões, mas é a chefe dos empregados da casa. Isso é muito importante, ao se falar deste Brasil neoliberal. Os dois filmes foram lançados em dois momentos bem diferentes do Brasil. No primeiro, o Brasil vivia o momento de esperança, com classes que nunca tinham tido acesso a chegar a universidades, por exemplo, chegarem — havia uma inclusão social. Agora estamos no campo do cada um por si. Onde o coletivo está sendo totalmente desmontado. A Regina Casé diz uma coisa interessante: “Ninguém pergunta a atrizes que se repetem, interpretando patroas: ‘Pôxa, de novo, uma patroa?’”. 

Há um momento do teu filme que lembra Eduardo Coutinho? Não se sabe da realidade projetada (descrita)...

Para mim, não há dúvidas de que aquilo (naquela cena) seja a história de vida dela (da personagem). Sei que existe em parte a ambiguidade, na cena, e que eu até desejei. Ali existem muitas camadas. Tratamos do que seja a ficção. A ficção é alguém ter coragem de falar algo em que os outros passem a acreditar. Ali, naquela cena (com ambiente natalino), volta a questão da propensão à mercadoria patente na atualidade: a verdade é uma mercadoria, o Natal é uma mercadoria. É na complexidade das cenas que saltam as perguntas, que surgem os questionamentos.

O personagem do Rogério Fróes carrega sabedoria extrema, não?

É um personagem que está à margem, pela idade. Mas ele é ainda uma reserva moral, no decorrer do filme. É um personagem humanista; aliás ele é o único deles. Trata-se de um professor que ama os livros, e que, de alguma forma, não encontra mais lugar nesse mundo de hoje. Isso é outra pergunta levantada pelo filme: “Como uma geração de humanista, com valores arraigados, não conseguiu transmitir isso adiante?” O que se perdeu ali, no meio do caminho? A casa (abandonada do filme) simboliza o Brasil, e de certa forma os personagens da Regina Casé e do Rogério Fróes se demonstram náufragos.

Como vê o cenário para as diretoras?

Quando eu comecei na profissão, havia um ambiente muito masculino. Houve evolução, mas há muito trabalho pela frente. Quanto mais diverso, mais rico será o cinema. Raças, classes sociais, homens, mulheres enriquecem o ambiente como um todo. Hoje  vemos mulheres em funções no cinema que eram muito difíceis. Fotógrafas, diretoras. Mulheres, antigamente, estavam em apenas alguns lugares da equipe, e não em todos.


Como vê a possibilidade de a secretária de Cultura reverter o quadro grave?

É muito difícil. Este é um governo que não valoriza a cultura. Temos que ver se vai ser possível avançar neste ambiente que está tão hostil quanto à cultura. Sempre temos que manter a esperança. Comecei a fazer cinema no Brasil, numa época em que ele tinha acabado, com o governo Collor. A minha geração foi uma geração sacrificada. Tive que ir embora do Brasil para conseguir fazer coisas. O setor nos últimos anos foi pujante por causa da construção das políticas públicas. Daí vieram os resultados positivos, num projeto de longo prazo. Por isso, estamos vendo filmes brasileiros reconhecidos no exterior. São filmes que vieram antes deste momento em que houve a paralisação do setor, é bom lembrar.

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