Lourenço Cazarré
postado em 14/03/2020 06:10
Nove histórias - livro de contos de J. D. Salinger - ganhou nova edição no Brasil, da Todavia, agora traduzido por Caetano Galindo. A edição que circulou anteriormente era da Editora do Autor, assinada por Jório Dauster, que também verteu para a língua portuguesa as grandes obras de Nabokov.
O livro vem com as orelhas em branco. Ou seja, não traz dicas sobre os contos ou dados sobre o autor. Maluquices do ultra-pirado Salinger que, após o devastador sucesso de O apanhador no campo de centeio (publicado em 1951), enfiou-se no mato (Cornish, New Hampshire) e de lá só saiu, na horizontal, seis décadas depois.
Avesso ao contato com o público (leitores, jornalistas e críticos literários), Salinger acabou — ao adotar essa opção preferencial pelo distanciamento - por atrair sobre si uma atenção que talvez fosse menos invasiva caso ele, de vez em quando, superando sua aversão à humanidade, concedesse uma entrevistinha ou outra. Tornou-se, por isso, o mais famoso eremita literário, e o mais caçado por fotógrafos e repórteres do mundo todo. Sua vida – na cama, na escrivaninha — foi então revirada, devassada sistematicamente, do começo ao fim, em incontáveis e incômodas publicações.
A nova versão dá outros títulos a todos os causos, sendo a mais notável a mudança de Tio Wiggily em Connecticut (Jório) para Tio Novelo em Connecticut (Galindo). No mais, trocas de sinônimos (ideal por perfeito e fase por período). Ah, e os parágrafos, antes abertos com comportados travessões, agora adotaram as moderníssimas aspas. Brincadeiras fora, é ótimo que, depois de meio século, tenhamos uma nova tradução, pois um dos traços mais fortes do autor é justamente o intenso uso do coloquial.
Num livro intitulado Salinger, de David Shields e Shane Salerno, publicado no Brasil em 2014 pela Íntrinseca, há um capítulo intitulado Siga as pistas: Nove histórias em que Shields faz uma leitura aprofundada desses contos. Uma leitura, digamos, psicológica. Ou seria psiquiátrica? É uma verdadeira escavação que busca rastrear, na vida e na pessoa do autor, explicações para as histórias ali narradas.
“Há sempre guerra. Há sempre trauma. Há sempre uma criança. Há sempre o mundo adulto da sexualidade e o mundo infantil da inocência — irreconciliáveis. Há sempre arte. Há sempre imaginação que se torna a busca da transcendência, da espiritualidade e do misticismo”, escreve Shields, e é difícil discordar dele.
Há crianças demais nesses contos, é verdade. E elas são demasiado inteligentes ou sensíveis. Num dos textos (Teddy, de final obscuro, incompreensível mesmo) nos é apresentado um geniozinho mirim que volta de uma aparentemente bem-sucedida turnê pela Europa, na qual exibiu seus impressionantes dotes intelectuais e espirituais, entre os quais sobressai a... capacidade de prever o futuro. Em Para Esmé - com amor e sordidez (um dos melhores) temos também uma menina excepcionalmente culta que trava um fascinante diálogo com um adulto, uma menina que sabe escrever “cartas extremamente articuladas”.
Há belos contos que têm Nova Iorque como cenário: Gargalhada e Logo antes da guerra com os esquimós. Há o tocante Lá no bote em que o menino quer saber por que a empregada disse que seu pai é um “judeu sovina”.
Há muitas mulheres jovens no livro, quase todas tolas e tagarelas. Há muitos adolescentes neuróticos. Há muitos homens grosseiros. E algumas cenas em que adultos meio estranhos beijam ou afagam criancinhas.
O narrador dessas Nove histórias lembra o Holden Caufileld, de O apanhador. É um grande contador de histórias, afiado, brincalhão e perturbado, que, sem que percebamos, nos questiona sobre vida, arte e religião. Um narrador que tem pleno domínio do diálogo. Mas é interessante registrar que nos dois últimos contos do livro (o divertidíssimo O período azul de Daumier-Smith e Teddy) já aparece a sombra do monge, do padre, do pastor, do pregador. Talvez seja a mesma assombração que perseguiu o imenso Leão Tolstói no final de sua vida. O mesmo abantesma que assalta alguns escritores quando eles, depois de terem erguido uma grande obra, passam a acreditar que já está na hora de salvar a humanidade toda.
Nove histórias
J. D. Salinger. Todavia, 206 páginas
Trecho
Um dia perfeito para peixes-banana
“Bom, eles mergulham num buraco que esteja cheio de bananas. Quando entram, eles são uns peixinhos com uma cara bem normal. Mas, depois, eles se comportam que nem uns porcos. Eu mesmo já fiquei sabendo de peixes-banana que chegaram a comer setenta e oito bananas”. Ele empurrou a boia e sua passageira para meio metro mais perto do horizonte. “Claro que depois eles ficam tão gordos que não conseguem mais sair do buraco. Não conseguem passar pela porta.”
“Sem ir longe demais”, Sybil disse. “O que acontece com eles?”
“O que acontece com quem?”
“Com os peixes-banana.”
“Ah, você quer saber depois deles comerem tanta banana que não conseguem mais sair do buraco das bananas?”
“É”, disse Sybil.
“Bom, eu não queria ter que te dizer isso. Ele morrem.”
“Por quê”, perguntou Sybil.
“Bom, eles pegam febre bananosa. É uma doença terrível.”
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