Diversão e Arte

'Tínhamos a sensação de que Brasília era nossa', lembra Noélia Ribeiro

A poeta é a primeira personagem de uma série série que trata da relação entre artistas da cidade e de como eles se relacionam com Brasília

Correio Braziliense
postado em 22/03/2020 11:30

Para a poeta, Brasília e ela igualmente escalafobéticas, atarantadas e espevitadas

 

A poeta Noélia Ribeiro é a primeira personagem da série que trata da relação entre as pessoas que fazem arte em Brasília e de como elas veem a cidade. Serão bate-papos semanais, cheios de memórias afetivas e muita vontade em favor da cultura brasiliense. “Não havia o que fazer na cidade. Então, ficávamos embaixo do bloco ou íamos ao clube perto de minha quadra: SQS 109. À medida que comecei a conhecer os artistas, fomos ocupando os espaços. Tínhamos a sensação de que Brasília era nossa. E era!”, lembra Noélia, nascida no Recife e moradora da capital do país desde 1972.


Qual a visibilidade das poetas na cena cultural de Brasília?

Possui representantes excelentes. Algumas poetas conseguem destaque; outras, injustamente, são pouco conhecidas. Veicular poesia não é algo simples, requer persistência, porque o público é pequeno e pouquíssimos compram nossos livros, exceto em lançamentos. Recentemente, em virtude do Dia Internacional da Mulher, participei do sarau Mulheres Porretas, no Espaço Cultural Leão da Serra, ao lado de 12 poetas, e ouvi poemas interessantíssimos. Um mês atrás, houve um sarau contra o feminicídio, no Teatro dos Bancários, em que as poetas tiveram oportunidade de declamar seus poemas para um bom número de pessoas. Então, se houvesse mais espaços, com certeza, teríamos mais visibilidade na cena cultural brasiliense.

Como e quando você decidiu publicar seus versos?

Há dois momentos distintos que posso destacar. O primeiro foi em 1982, quando Paulo Tovar, poeta importante da Geração Mimeógrafo e querido amigo, convenceu-me a mostrar meus poemas. Embora insegura, encarei o desafio. Lancei o Expectativa no Centro de Criatividade, ao lado do Galpãozinho. Depois desapareci da cena cultural e voltei em 2009, com o Atarantada, publicado por uma editora de Brasília. Eu estava vivendo o fim de meu casamento e senti que aquele era o momento de voltar a me envolver com a cultura brasiliense. Mesmo chovendo a cântaros, o Café da Rua 8, onde foi o lançamento, ficou lotado de amigos queridos. Tinha gente que eu não via há anos!

Cada um tem sua Brasília na memória, histórias particulares e afetivas. E a Brasília que você viu crescer? Que lembranças guarda?

Era muito diferente do que é hoje. Não havia o que fazer na cidade. Então, ficávamos embaixo do bloco ou íamos ao clube perto de minha quadra: SQS 109. À medida que comecei a conhecer os artistas, fomos ocupando os espaços. Tínhamos a sensação de que Brasília era nossa. E era! Era comum fazermos encontros em nossas casas, com música e poesia (nem sabíamos que eram saraus). Tenho várias fotos desses momentos. Fundamos a COPPO (Cooperativa de Compositores e Poetas), da qual fui secretária, e fizemos três apresentações poético-musicais, no Sesc, com casa cheia. Aí surgiram os festivais de música, o Concerto Cabeças, a Geração Mimeógrafo e o Liga Tripa, as peças e os shows no Galpão e no Galpãozinho, até chegarem os artistas de fora para dividir os holofotes.

Os primeiros livros eram em mimeógrafos, uma luta para correr por aí com exemplares debaixo do braço oferecendo pra todo mundo. Como você fazia circular suas obras?

Quando publiquei meu primeiro livro, em 1982, embora fosse mimeografado, optei pelo modo mais tradicional de lançamento. Porém, lembro-me bem de como meus amigos faziam para vender seus livros. O Nicolas Behr, meu namorado à epoca, costumava vendê-los na porta dos teatros e, antes de começar o espetáculo, ele subia ao palco e literalmente lançava os livros para a plateia. O Vicente Sá ia ao Beirute, com o livro Tua mãe, e perguntava nas mesas “você não vai levar ‘tua mãe’ pra casa?”. O Sóter criou a editora Semim. Cada poeta tinha um jeito próprio de fazer circular sua poesia.

Você e seus amigos poetas enfrentaram momentos difíceis numa capital em que cultura era uma palavra subversiva nos anos da ditadura. Sofreu alguma perseguição por ser mulher e poeta?

Eu não era conhecida e, por sorte, não sofri perseguição, mas tenho amigas e amigos poetas e músicos que foram presos ou torturados. Era um tempo de muito medo, em que se usava o humor para escamotear o que se queria dizer. Para entender realmente os poemas, o leitor tinha de buscar suas entrelinhas.

Depois de a Legião Urbana gravar Travessia do Eixão, música de Nicolas Behr com Nonato Veras em sua homenagem, você virou referência nacional. O hit já era sucesso com o pessoal do Liga Tripa. Como é ser musa de uma geração?

É uma delícia. Não estava nos meus planos virar musa, ainda mais ser conhecida por isso. Não nego que é muito bom receber o carinho das pessoas, quando descobrem que sou a Noélia da canção (inicialmente cantada pelo Liga Tripa), mas faço questão de destacar que sou poeta, antes de ser musa. Eu costumo recitar meus poemas fora de Brasília e nunca usei desse artifício para divulgar meu trabalho. Isso não impede que, em algum momento, eu fale sobre o fato, caso me perguntem. Acredito que tenha conseguido alcançar a admiração das pessoas apenas com minha poesia. Em São Paulo, conheço fãs da Legião que, quando podem, vão às minhas apresentações, conversam e tiram fotos. Acho superlegal encontrá-los, assim como aqueles que não conhecem essa história e aparecem somente para me ouvir recitar.

Quais são as suas referências? Adota algum processo criativo ou “inspirativo”?

Minhas referências são muitas. A todo momento, leio um autor que me influencia, mas posso dizer que os poetas da Geração Mimeógrafo são uma referência forte. Meus poemas partem de uma palavra, de uma imagem, de um acontecimento, de uma lembrança, de uma ideia, de um livro que acabei de ler, de um filme que vi, de uma música que ouvi, enfim, partem de muitos lugares. Costumo escrever uma primeira versão, que será relida (inclusive em voz alta) e reescrita até vir a ser um poema ou não. Se aprovado, dou início ao processo de ajuste de palavras e idas a dicionários e gramáticas.

Você andava com uma turma maravilhosamente poética, fale um pouco sobre esse pessoal e do contato com gente da luz de Cassiano Nunes...

Sinto-me privilegiada por ter vivido uma época em que poetas e músicos brilhantes escreviam a história da cidade. Cassiano Nunes era inspiração para todos nós. Eu cursei letras na Universidade Brasília (UnB), mas, infelizmente, nunca fui sua aluna. Assim como ele, a cidade abrigou e abriga Chacal, Turiba, Chico Alvim, Anderson Braga Horta e tantos outros. De alguns só me tornei mais próxima depois que publiquei o livro Atarantada e voltei ao convívio com os escritores.

Nesse mundo de ignorância, fake news e ódio, como a poesia, o olhar poético, se insere? Falar de amor é coisa de gente fraca, frágil?

Tem sido bem difícil constatar que chegamos ao fundo do poço, no que diz respeito à ignorância, à truculência e ao ódio. Nessa hora, o olhar poético atua como contraponto. A arte é nossa arma contra o obscurantismo. Por meio dela, pode-se levar às pessoas um olhar mais humanizado e até mais “womanizado”, porque as mulheres têm lutado muito para mudar esse estado de coisas. Se não fossem as músicas que ouço, os filmes e peças a que assisto, os livros que leio, eu estaria muito mais triste. E agora mais ainda com essa ameaça do coronavírus. Eu gosto de escrever poemas de amor (e desejo) e não acho que falar sobre o tema seja coisa de fraco. Para amar é preciso coragem. O amor, entre outras coisas, nos impede de sair por aí batendo em quem pensa diferente de nós. Amor, empatia, respeito e compaixão são para os fortes.

Em seus livros você carrega uma leveza fluida, ancestral — misturada com o peso cinza do concreto candango. Como é esse amálgama?

Gostei da forma como você enxerga minha poesia. Na verdade, não sei como se dá esse amálgama. O poema tem um caminho próprio, nem sempre vai por onde quero. Em Brasília, convivemos com o concreto e o verde, o poder e a liberdade, a alegria e a seriedade, o silêncio e o som, e tudo isso aparece em nosso trabalho artístico, mesmo que não queiramos. Meus quatro livros trazem, com frequência, assuntos densos, mas prefiro abordá-los com a leveza fluida que você citou, na construção desse amálgama.

Em que Brasília te seduz para escrever?

Brasília é feminina: tem formas arredondadas e armadilhas sedutoras, além das contradições que citei anteriormente. Vivo aqui há mais de 40 anos e, por isso, seria impossível não tirar dessa convivência ideias para meus poemas. A sedução a que você se refere passa também pelo fato de termos, praticamente, a mesma idade e sermos igualmente escalafobéticas, atarantadas e espevitadas.


Travessia do Eixão

Nossa Senhora do Cerrado
Protetora dos pedestres
Que atravessam o 
Eixão Às seis horas da tarde
Fazei com que eu chegue são e salvo
Na casa de Noélia
Nonô Nonô Nonô Nononô


À margem

Na década de 1970, esse movimento literário e libertário circulava nos grandes centros urbanos do país. Longe das grandes editoras e do establishment, começaram a publicar livros mimeografados e circulá-los na cena underground. Era a poesia enfrentando o sistema. 
 
 
 
 
 
 

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