Correio Braziliense
postado em 25/03/2020 04:38
Não há como o carioca Rodrigo Felha esconder a pitada de orgulho, quando afirma: “Fui um dos primeiros favelados a entrar numa escola de cinema, a Darcy Ribeiro, a partir da democratização do sistema de bolsas”. Aos 40 anos, ele conta que demorou a se identificar como cineasta. “O pessoal do asfalto, antes de mim, percebeu a conquista”. Tornar-se cineasta se transformou numa questão de “imposição pessoal”. Há mais de 14 anos, num retrospecto de carreira, o diretor — profissionalizado durante a realização do documentário Falcão, meninos do tráfico (de Celso Athayde e MV Bill) — observa que é de uma geração na qual o acesso era dificultado para as pessoas das favelas. “Sou dos primeiros cineastas a ver o audiovisual como ferramenta de transformação”, diz, ao ver lançada a mais recente empreitada: a série Favela gay — Periferias LGBTQI+, que estreia hoje, às 19h30, no Canal Brasil.
Premiado melhor filme pelo Festival do Cinema do Rio, em 2014, o longa Favela Gay foi a origem da atual série. “Até hoje, ele gera convites para debates e palestras e traz o meu desejo de visibilizar as pessoas: assustamos a sociedade, na contramão. Houve a vontade de visibilizar pessoas normais (sempre entrevistados, e não personagens) do jeito que devem ser consideradas. O público esperava o gay favelado oprimido, triste e sofredor, mas existe o lado que quis mostrar — o lado da luta e da sobrevivência. Pediram, na época das lotadas sessões do documentário, outras e outras sessões”, lembra Felha.
Um dos comentários sistemáticos, na repercussão do filme era: “não vi nada demais nesses gays”. A meta de reproduzir a realidade foi alcançada. Num universo completamente à parte, hétero, Rodrigo Felha foi atraído pela curiosidade. Ele foi fisgado pelo desejo de registrar quem eram as pessoas que, num evento (jogo de queimada organizado por Tati Quebra-Barraco), ofuscaram atrativos como a batida do funk e a dinâmica de interação entre comunidades (presentes na festa): havia “êxtase, alegria e afrontamento” quando as moças jogadoras deixavam a quadra e entravam os gays para jogar.
O amor entre Isabella Santorinne, uma mulher transexual, e o apaixonado Raffa Carmo dá o tom de um dos dez episódios da série gravado no Pará. A equipe de pesquisas do programa ainda registrou enredos reais no Distrito Federal (a transexual Thayná Caminho, da Cidade Estrutural, está entre os entrevistados, ao lado, de Ricardo Caldeira, artista integrado a centros culturais de São Sebastião), em São Paulo, na Bahia e no Rio Grande do Sul. Conflitos familiares, acolhimento dos pais, e ações de grupos contra a rede de prostituição que teima em ser solução para o desemprego de cerca de 80% dos travestis, junto com descoberta de possibilidades, como a da adoção de nome social, estão entre os assuntos abordados que ainda recaem sobre complicações em tópicos como paternidade.
Reflexão
Entre as constatações do diretor Rodrigo Felha, hábil em partilhar da intimidade com entrevistados e projetar mazelas interiores de alguns, está a da vocação da maioria dos brasileiros como “uma sociedade que só ataca, não abraça”. Rodada ao final de 2018, só agora série Favela gay — Periferias LGBTQI chega à telinha. “O benefício do produto audiovisual ter demorado a sair vem do nosso momento: estamos numa era de confrontar, de afirmar e de reafirmar. Pessoas diversas, distintas e plurais, em vários pontos do Brasil, entram na mesma rua, alinhadas pra dizerem ‘somos iguais e sofremos e vivemos da mesma forma’”, comenta o realizador.
Na linha informativa, um intersexo paulistano, participante da série, exemplifica o entusiasmo que brota de Felha: “Temos o benefício da reflexão. Antes, o chamariam de hermafrodita, trazendo uma conotação animal para um ser humano. Os pais e a ciência escolheram o sexo para ser seguido, no caso dele. Ele questiona a sensação de ser errada (a dubiedade). Foi decepado: pensa como homem, no biotipo de uma mulher”. O cineasta avalia não ter enfatizado sensualização ou sexualização do teor de qualquer programa da série.
Num dos episódios — que cerca as consagradas imagens da transexual Leona Vingativa e do amigo Paulo Colluci, uma mãe comparece para enfatizar que nem o pai policial “cobrou mudança” do filho homossexual. Assumindo a carapuça de “um mito”, Leona Vingativa lidera o teor de entretenimento da série, ao revelar, no Pará, motivos de tanto alcance nas redes sociais. Defendendo a conscientização das pessoas acerca de parte do mundo “sujo e imundo”, ela reina em paródias e clipes muscais nos quais que se destacam títulos como Lixo na sua cara, Eu quero um boy e Vida de Patrícia.
Engajamento
Nascido e criado na Cidade de Deus, Rodrigo Felha começou no audiovisual carregando a bolsa com câmera para o diretor de fotografia uruguaio Miguel Vassy, em Falcão — Meninos do tráfico. Vassy o instruiu, ao ponto de ser forjado profissional e, na sequência, Felha teve o talento aproveitado no sucesso, cujo produtor foi Cacá Diegues, chamado 5x Favela — Agora por nós mesmos (2010).
Na realidade da periferia, a rotina com o coronavírus está ainda mais apertada, mas a expressão audiovisual reverte em certo conforto, segundo esclarece o realizador. “Estamos tentando evitar sair de casa, e ficamos junto com familiares. Meu trabalho tem sido forte, em termos de conscientização. As pessoas das favelas têm necessidades básicas e as coisas só acontecem se, de fato, elas forem trabalhar. Quando falamos em trabalhar: falamos de pegar BRT cheio, trem e metrô cheios. A apreensão é de quando isso vai chegar na gente. Tentamos alertar de tudo, por meio das redes sociais”, comenta. Presidindo a ONG Os Arteiros, o cineasta garante atuação massiva, falando de prevenção: “Temos um trabalho com potencial para ajudar as pessoas”, sintetiza.
Pelas artes, mobilizado com a realização do longa 5x Pacificação (2012), Felha desbaratou parte do confronto que vincula “segurança lúdica e imaginária abraçada pela sociedade (a outra ponta da problemática)”. Um dos fundadores da Cufa (Central Única das Favelas), ele conta que “fez barulho”, na implantação do núcleo audiovisual. Na Rede Globo, respondeu por alguns roteiros do programa Esquenta. Em Pacificação, por escolha, Rodrigo Felha abordou o tema da Polícia.
Isso porque, um dia antes de partir para Cannes (França), em que apresentaria outro filme, quando seguia para jantar comemorativo, o diretor foi abordado por policial que quis “abaixar a calça dele”, para realizar uma revista. “Não houve diálogo, e sim o constrangimento. Daí, quis entender (no Pacificação) o pensamento da polícia em relação à favela. Temos uma política de segurança defasada, absolutamente. É um trabalho de troca de vidas por apreensões de drogas. O governador, com os policiais, troca nossas vidas pela apreensão de um fuzil”, conclui.
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