Diversão e Arte

O livro do privilegiado cinéfilo Sérgio Augusto

Ensaios ao longo de 18 anos formam a coletânea separada por Sérgio Augusto para o livro Vai começar a sessão

Correio Braziliense
postado em 04/04/2020 07:47

O autor de Vai começar a sessão Sérgio Augusto

 

 

Com tramas riquíssimas que nortearam os bastidores do fazer cinematográfico, o livro Vai começar a sessão abrange quase uas décadas de reflexões do escritor Sérgio Augusto. Em tom de elogio, o professor da UFRJ Paulo Roberto Pires (que tem,  entre as obras, a Torquatália — em que organizou textos de Torquato Neto) coloca a tacha de “indisciplinado” no autor de Vai começar a sessão, uma vez que Sérgio Augusto, nos relatos, “gosta de pular do cinema para a literatura”.

 

Aos 77 anos, o autor — que contribuiu para o caldeirão crítico de publicações como Veja, O Cruzeiro, O Pasquim e para a revista Bravo! — explicita a bagagem de que começou a escrever sobre cinema aos 15 anos e que, de Millôr Fernandes, ganhou o apelido de “Sérgio Augoogle”, dado o acúmulo de referências.

 

Se a literatura é uma das instâncias acessadas pelo autor, ele conta anedotas bacanas que cercam, entre outros, criadores como William Faulkner, de quem descreve a passagem pelo Brasil, nos anos de 1950, quando “bebia, direitinho”; mas sem dar vexame em público. Em 40 parcerias em roteiros de Hollywood, Faulkner, que assinou best-seller literário único, em 1939 (Palmeiras selvagens), só logrou três créditos em scripts de cinema, sob as asas do milionário Howard Hawks.

 

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Ainda no campo literário, um dos textos da coletânea de ensaios explica o empenho da jornalista Diana McLellan, com o livro The girls (2001), no qual conta “segredos excitantes” de personalidades como Greta Garbo (numa citação aos casos homossexuais cultivados por ela), sem esquecer de referendar uniões de cama entre figuras como Marlene Dietrich e Claudette 

Colbert. A autora do livro celebra contribuir para a queda “de um muro de mentiras erguido por estrelas lésbicas” empenhadas em “se proteger do moralismo, à época, vigente em Hollywood”.

 

Códigos preponderantes de censura assumida ou escamoteada transparecem em alguns textos de Sérgio Augusto. Retomando um episódio de 1942 que alinhou jangadeiros cearenses, o Estado Novo e o cinema, ele relata parte da epopeia do criador de Cidadão Kane, Orson Welles, “encurralado por Hollywood e pelo Departamento de Estado americano”, quando das filmagens do inacabado longa It´s all true. “Recebidos pelo ditador Getúlio Vargas”, quatro jangadeiros, desprovidos de bússola ou de carta náutica, levaram dois meses para vencer os 2381 quilômetros que separam Fortaleza e Rio de Janeiro. A intenção era de sensibilizar para a situação de penúria nas condições de 35 mil pescadores cearenses. O governo e o cinema norte-americano deram atenção a reivindicações que, entretanto, descambaram para fatalidades tão bem descritas em Vai começar a sessão.

 

Nômade idealista

 

Entre cineastas brasileiros que ajudaram na constituição do audiovisual verde-e-amarelo, Sérgio Augusto destaca Alberto Cavalcanti, que, em 35 anos, respondeu por mais de 30 documentários e criou vários longas de ficção pela Europa. 

 

Perspicácia e afinco de Alberto vieram na qualificação dele como “um nômade idealista” (em citação ao crítico inglês David Thomson) e renderam um convite, feito por Assis Chateaubriand e Pietro Maria Bardi, para que, em 1949, aportasse novamente no Brasil. Sérgio Augusto, no livro, conta da vontade de Cavalcanti permanecer no Brasil, mas isso antes dos “aborrecimentos” com o “macarthismo caboclo” com o qual sofreu mesmo sem ter integrado o Partido Comunista.

 

Para os aficionados pelo cinema nacional — e, por extensão, pela valorização do cinema novo —, o capítulo Como fomos tratados pela bíblia dos cinéfilos reserva enredo saboroso. O texto recupera parte de entrevista dada, em 1970, por um Cacá Diegues qualificado a explicar do sumo da gênese do movimento: “Nós (brasileiros) descobrimos o cinema vendo os clássicos, mas foi com a nouvelle vague e a leitura do Cahiers (du Cinéma) que começamos a fazer filmes”.

 

Para além de dados como o da publicação, em 1966, de um suplemento de 12 páginas dedicado ao cinema novo (no Cahiers), a leitura esclarece a palpitação estrangeira com Vidas secas (de Nelson Pereira dos Santos) e de Deus e o diabo na terra do sol, assinado por Glauber Rocha, o mesmo diretor do feito de estampar com um filme dele (O dragão da maldade contra o santo guerreiro) a capa, pela primeira vez colorida, da chamada bíblia dos cinéfilos.

 

 

O arcabouço de pólvora gerenciado pelo sempre crítico Glauber Rocha está num capítulo bem relevante de Vai começar a sessão: Um apocalipse como Zaratustra teria filmado, que cerca as revisões (antigas e renovadas) da versão redux do clássico Apocalypse Now. É de impressionar algumas críticas equivocadas ou raivosas, quando do lançamento da obra-prima de Francis Ford Coppola.

 

Pelo que lembra Sérgio Augusto, Glauber xingou Marlon Brando, espinafrou Elia Kazan e praticamente exigia que Coppola tivesse explicitado que — no clássico filme de guerra — o mal estava nas ruínas de Wall Street, que “financia a Guerra do Vietnã e financia seu filme”.

 

A saraivada de vaias (em fortuna crítica) para Apocalipse Now incorporou comentários da revista Time (“filme intelectualmente vazio”), do temido crítico Andrew Sarris (do Village Voice) — “o filme é um incongruente e extravagante monumento ao fracasso artístico” — e até do progressista Peter Biskind (autor do livro Como a geração sexo, drogas e rock´n´roll salvou Hollywood) que alertou para como o longa agredia os sentidos e seduzia o espectador “pelas vísceras”.

 

Já Sérgio Augusto, com acuidade, traça comentários em torno da vitória das mulheres e da sensibilidade feminina, elementos recuperados (em Redux) em relação a versões anteriores da obra.

 

Posturas radicais

 

Comparada à diva Maria Callas, a afiada crítica Pauline Kael (vista como “um oráculo de Delfos”, quando o tema era cinema) marca protagonismo na narrativa, pelos conceitos definitivos, ainda que estivesse distanciada do modelo “afinado com o gosto das novas gerações”.

 

Sérgio Augusto relata as duas mortes de Kael: em 1999, quando saiu de cena, e, em 2001, quando, de fato, morreu. Dona de posturas radicais — “você rompe com uma pessoa com quem divide tudo, sim”, disse, no caso de discordâncias de gostos cinematográficos (reza a lenda que rompeu com um companheiro, por causa das divergências quanto ao veredito de Amor, sublime amor) —, Pauline comparece na leitura referendando a postura de trator das palavras. 

 

Pauline via o sistema multiplex (assentados em shopping), em face ao tamanho das salas, como uma plataforma que “amesquinhava a experiência cinematográfica”, aproximando o cinema do videocassete (popular antes do streaming). Inclemente, gozava até mesmo de si, comentando, acidamente da condição da osteoporose que a teria feito “encolher dez centímetros” e a deixado “parecida com um camarão” (diante da curvatura na coluna). Quanto ao cinema, professava crenças tachativas de como O silêncio dos inocentes era “basicamente, uma bobagem” e Gladiador ter sido estrelado por um ator 

(Russell Crowe) que se assemelhava a “um dos Três Patetas”.

 

Em Vai começar a sessão, o leitor vai deparar com a percepção de Sérgio Augusto, quando comenta do clássico A embriaguez do sucesso (1957): “Poucos filmes foram tão perversos ao estudar o poder corruptor da vaidade, do dinheiro e de certo tipo de jornalismo”. E este conceito de jornalismo desvirtuado, registrado no enredo, passa por exame num dos capítulos do livro (Um fantasma na tela e outro na plateia).

 

O texto explora a implantação de personalidades fictícias no meio cinematográfico, relevantes e influentes. O departamento de publicidade da Sony, por exemplo, criou David Manning um 

forjado crítico do The Ridgefield Press e que avalizava positivamente (em informes fictícios) os filmes da empresa.

 

Alan Smithee foi outro desmascarado como testa de ferro que tinha o nome atrelado ao Directors Guild of America (sindicato dos diretores norte-americanos). Ele despontou como celebridade fake, e cravou a assinatura em mais de 104 projetos menores que incluíram o vídeo musical (de Whitney Houston) O guarda-costas. Diretores como David Lynch e John  Frankenheimer fizeram uso do expediente de encampar o pseudônimo, pelo descontentamento de verem obras suas desfiguradas, caso de Duna, com uma hora extra para a tevê, e, no caso de Frankenheimer, o resultado da telessérie Riviera (1987). Circulando desde que emplacou, em Só matando (1969), Alan Smithee figurou até em Os Simpsons, como diretor de um documentário inserido num dos episódios da animada família.

 

 

Marcantes tópicos do livro

 

Jessica de Uma cilada para Roger Rabbit

 

Imagem é tudo

 

Entre muitas características, os atributos físicos de atores e personagens, naturalmente, têm bom espaço na publicação. James Dean, por exemplo, teria sido “embalsamado pela indústria da idolatria”, enquanto a sensual figura de Jane Mansfield, superaria, com os atributos sexies, a artificialidade das animações de Betty Boop e Jessica Rabbit. Nem a figura de Jesus escapa às observações levantadas pela obra. A representação, pelo arianismo, alcança crítica às imagens de Max von Sydow (A maior história de todos os tempos) e o chamado “Jesus de Malibu” tipificado por Jim Caviezel, no longa A Paixão de Cristo.

 

Robert De Niro em Taxi Driver 

 

Uma ode ao fascismo

 

Há um capítulo da obra que reproduz pensamentos do crítico inglês Mark Cousins, polêmico, ao analisar Taxi driver, visto como “ode à purificação urbana em moldes fascistas”, dado o comportamento ensandecido do personagem de Robert De Niro. “O filme empresta dignidade a medos imaturos e torna glorioso o inglório instinto de matar quem odiamos”, arremata Cousins.

 

Celebração do cinismo amoral de Lubitsch

 

“As plateias americanas, carentes de qualquer forma de escapismos para esquecer dos rigores da Grande Depressão, deliciavam-se com as frivolidades da aristocracia europeia, cosmopolita, esnobe, hedonista e encantadoramente decadente, a fauna predileta dos filmes de Ernst Lubitsch”

 

Antonioni, no Festival de Gramado

 

Enlevo espiritual

 

“Michelangelo Antonioni e Ingmar Bergman deprimiam, com seus filmes, espectadores de todas as crenças e descrenças, ajudando-os a entender o mundo e as coisas, expondo-os a um confronto com suas próprias misérias espirituais”

 

Visão radical

 

Reprodução de um diálogo, no capítulo Dois escândalos políticos da época do suingue, mantido entre o compositor Marc Blitzstein (compositor e tradutor de a ópera A ópera dos três vinténs) e Bertolt Brecht é muito forte, na intensidade do entusiasmo de Brecht com o trabalho do colega. “Por que você não escreve uma peça sobre todos os tipos de prostituição: a imprensa, a Igreja, as cortes de Justiça, as artes, o sistema inteiro?”, teria sugerido ao libretista.

 

Matar ou morrer: Clássico absoluto 

 

Criador supremo?

 

 

Há um filme, citado no livro, que causou polêmica, dada a ideia de que o roteirista Carl Foreman seria mais fundamental ao desenvolvimento do clássico Matar ou morrer (1952), superando a figura do produtor Stanley Kramer e a importância do diretor Fred Zinnemann. A apropriação sugerida pela obra foi considerada um insulto pela viúva Karen Kramer, como registrado: “Stanley sempre foi um exemplo de honestidade e um baluarte do liberalismo em Hollywood. Deu emprego aos marginalizados pela Lista Negra”, ela enfatizou.

 

 

O Pasquim

 

Com mais de 1072 edições, criadas entre 1969 e 1991, O Pasquim — do qual o crítico Sérgio Augusto tomou parte, desde 1969 — foi um espaço informativo que fortemente entrou em combate com a linha dura da ditadura. Com linguagem humorada e estruturado com a participação de provocadores como Ruy Castro, Tarso de Castro, Ivan Lessa, Jaguar e Henfil, O Pasquim foi dado como "o maior fenômeno da imprensa editorial", por Sérgio Augusto.

 

Os números impressionam: inicialmente com a modesta tiragem de 14 mil exemplares a publicação expandiu as possibilidades e chegou ao teto da comercialização de 200 mil exemplares. Sérgio Augusto chegou ao Pasquim assinando texto em torno da morte da atriz Sharon Tate, a companheira de Roman Polanski homenageada recentemente pela produção Era uma vez em... Hollywood (de Quentin Tarantino). 

 

Vai começar a sessão — Coletânea de ensaios de Sérgio Augusto. Objetiva, 440 páginas. Preço sugerido: R$ 89,90 e R$ 39,90 (e-book). 

 

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    Jessica de Uma cilada para Roger Rabbit Foto: Reprodução/ Internet
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    Robert De Niro em Taxi Driver Foto: Columbia Pictures/ Divulgação
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    Antonioni, no Festival de Gramado Foto: Zuleika de Souza/ CB/ DA Press
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    Matar ou morrer: Clássico absoluto Foto: United Artists/ Divulgação

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