Diversão e Arte

Humberto Pedrancini está na série do Correio Conversas Candangas

Em tempos de crise, vem do tarot um ensinamento na vida de Humberto Pedrancini: "A roda gira"

Correio Braziliense
postado em 05/04/2020 07:12

Humberto Pedrancini, dramaturgo radicado em Brasília

 

Em Brasília, fazer e viver de cultura é uma aventura como a de um equilibrista no Everest. Faltam políticas públicas, o desinteresse dos governantes é escancarado e beira o escárnio. Ter o palco de um teatro como local de criação e de trabalho está complicado em dias de pandemia. Muitos artistas passam por momentos difíceis, mas carregam a primavera dentro si, o conforto de viver com arte. O dramaturgo Humberto Pedrancini é o entrevistado da série Conversas candangas. Mineiro de Uberlândia, crescido em Goiânia é adotado por Brasília, ele faz e vive da dramaturgia desde os anos 1970. Uma referência, um mestre que enfrenta mais essa barra pesada com elegância de um bardo contemporâneo. Encara o teatro como uma ferramenta de reflexão, principalmente nos dias de hoje e, nessa conversa com o Correio, fala sobre a Brasília que acolhe e que nos deixa mais solidários.
 
 
Quando e como você se encontrou com Brasília? Qual foi primeira impressão?
Brasília entrou em minha vida na infância! Acho que eu estava com 8 anos! Meu pai, italiano da Lombardia, era mestre de obras. E veio trabalhar aqui (no fim dos anos 1950). Na época da construção da cidade, e no meu período de férias escolares, ele me trazia para cá em temporadas de uma semana ou duas. Vivíamos em Goiânia. Lembro-me de ver os trabalhos de terraplanagem daquela que depois veio a ser a Praça dos Três Poderes. Não havia prédio algum. Estavam começando a montar as ferragens dos palácios que a compõem. Estava aqui quando chegou ao Zoológico a elefanta Neli, que ficava acorrentada a um toco de madeira! Também vi o presidente americano Eisenhower, que visitava a capital em construção. Para minha imensa tristeza na época, meu pai não me trouxe para a inauguração da Capital da Esperança! Trouxe minha irmã, que, por ser mais velha que eu, daria menos trabalho. Como teria sido grande aventura me misturar à alegre euforia dos candangos que construíram a cidade! Rir dos políticos desajeitados em seus fraques e cartolas. Me aproximar dos artistas que aqui vieram! Logo meu pai morreu e minhas visitas se restringiram a raras excursões colegiais.


E o teatro? Quando começa sua história nos palcos?
O teatro me trouxe de novo a Brasilia, definitivamente! Em 1968 comecei num grupo de teatro em Goiânia e percebi que me dava prazer, venci a timidez, me expressava cada vez melhor. E percebi que sem o teatro minha vida seria menor! Soube que na Universidade de Brasília (UnB) se falava em criar Faculdade de Teatro. Entrei na UnB em comunicação, mas para aguardar o curso de teatro, que foi criado alguns anos depois de eu ter abandonado a universidade por “incompatibilidade de gênios” (risos). Nessa época estava dirigindo grupo de teatro do Sesc-DF.


Você ajudou a formar companhias e atores... Nessa trajetória, o que ficou para trás e que você acha importante recuperar?
Ficaram muitas coisas boas! Amizades que permanecem mesmo com o passar dos anos. Faço parte daquilo que posso definir como uma família artística maravilhosa, composta por tanta gente, que em algum momento compartilhamos nossas vidas! Recordo a importância que os grupos teatrais tiveram no passado. Eram dedicados à pesquisa de linguagens, estudos e criação de grandes trabalhos! Vejo que estão ressurgindo nesses tempos aflitivos, como trabalhos de colaboração e solidariedade. Isso é muito bom!


Lembro-me de você no Teatro da Praça, em Taguatinga, com uma trupe de pessoas fantásticas. Muitas continuam nos palcos, outras deram outro caminho para a vida. Mas o que eles carregam em comum nessas trajetórias? O que o teatro pode ajudar no cotidiano nas pessoas?
Verdade. Tive o privilegio de participar de alguns grupos e pessoas fenomenais que me ensinaram muito e moldaram minha vida. Minha gratidão é imensa. Muito trilharam outros caminhos. A vida,  às vezes, nos exige escolhas e nem sempre são as que nos fazem felizes. Mas a arte tem o dom de nos dar o olhar perspicaz, o senso crítico aguçado e a capacidade de ler nas entrelinhas. podemos deixar Arte mas ela nunca nos deixa. Nos acompanhará sempre.


Estamos vivenciando experiências que nem Shakespeare pensaria. Como a arte pode ajudar num momento como esse? E por que, na sua opinião, os homens públicos não dão à cultura o devido valor?
Nosso mal-estar não começou com essa gripe assassina, que não quero dizer o nome — um vírus ínfimo, microscópico, derruba Bolsas de Valores, destrói economias, modifica as relações de trabalho, afasta as pessoas e modifica as relações familiares. E, então percebemos que não se sabe o que fazer, como solucionar os problemas, porque tudo foi construído para o fortalecimento das corporações e não se trabalha para o ser humano. Só a ganância importa. Aqui no Brasil ainda temos atitudes tresloucadas de um presidente que não se entende com seus ministros na condução do problema. Quem sabe, essa paralisação do mundo contribua para o surgimento de algo novo? Alguma forma de conduzir a civilização para que o ser humano seja o centro de tudo!


Brasília oferece, desde o começo, o acolhimento. Uma capital que surgiu num cerradão vermelho e que chega aos 60 anos ainda recebendo pessoas e sonhos de vários lugares. Quais lembranças de amigos você guarda desse primeiro momento seu na cidade?
Aqui encontrei minha identidade! Gosto desse gramado imensos da Cidade Oficial, das árvores e desse céu que enfeitiça. Gosto também da agitação de Taguatinga, onde moro, sua gente de todas cores, sotaques. É a nossa TaguaYork, onde a Praça do Relógio é nossa Time Square (risos)! Recordo-me com alegria das loucuras que vivi no Beirute na década de 1970, do projeto Teatro nas Segundas-Feiras no Teatro Nacional. Numa delas vi pela primeira vez Gê Martú, esse ícone brasiliense, representando Dos males do tabaco.. Na sexta-feira, a happy-hour que valia era no Conic. Amigos queridos, morreram muitos, mas tantos estão vivos e, vez ou outra, ainda damos gargalhadas juntos. Tenho ficado amigo de muitos filhos de amigos. A roda gira, me ensinou o tarot.


Voltando à questão da importância da arte no cotidiano das pessoas, ela nos deixa mais solidários, mais humanos... Como mostrar isso às pessoas sem se esbarrar no ódio e na intolerância atuais? Estamos numa encruzilhada?
A arte sempre mostrou as contradições humanas. Às vezes de forma triste, outras vezes de maneira engraçada. Diverte e ensina ao mesmo tempo. Vivemos um tempo estranho que nos obriga à reinvenção. Novas formas artísticas surgem a todo tempo. As tradicionais buscam caminhos. Sei que surgirão novas asas!


A Faculdade Dulcina ainda é uma referência na dramaturgia da capital. Fale um pouco desse espaço...
As escolas de teatro prestam grandes serviços à cidade! Em mercado de trabalho tão restrito buscam permanecer! Nisso a Faculdade Dulcina é exemplo de resistência e sua atividade ecoa na cidade. Ela interage, não fica voltada para dentro de si mesma..Viva Dulcina!


Como o espaço geográfico de Brasília e a alma ainda nova, misturada, da cidade te influenciaram como homem e dramaturgo?
Aqui a política faz a vida da cidade. É impossível ficar imune a essa questão. Os espaços concebidos por Lucio Costa e Oscar Niemeyer tinham objetivo de integrar classes sociais diversas em uma área comum. Isso não aconteceu. A cidade, hoje, acentua as diferenças, aumentado cada dia mais esse distanciamento. Todos os investimentos urbanísticos são centralizados no Plano Piloto. Regiões administrativas que recolhem elevado valor em impostos não têm retorno em igual proporção. O transporte público é caro e ineficiente, a atenção à saúde é mal gerida e o trânsito de veículos traz transtornos espetaculares. Logo a cidade ficará paralisada por engarrafamentos quilométricos.


A classe artística está num momento complicado, uma questão de sobrevivência mesmo, como está se virando sem poder trabalhar? Recentemente você criou uma escola de atores na internet, como funciona?
A classe artística tem vivido momentos terríveis. Por um ano um secretário de Cultura, desconhecido da classe, geriu uma política de confronto, invalidando projetos aprovados por meio do Fundo de Apoio à Cultura (FAC). Na gestão anterior, diminuiu a verba para editais, além de não dialogar  com artistas. Seu substituo demonstra boa vontade, conversa com artistas e se compromete a pagar os projetos aprovado e lançar editais nos prazos exigidos por lei. A pandemia paralisou as atividades artística por completo e tudo está mais lento. A situação está muito difícil para os artistas. Não temos trabalho e nem uma ação emergencial que nos contemple. Muitos estão em situação precária. Começa a faltar o que comer.. Queremos uma ação emergencial urgente.


Como está a quarentena? O que você tem feito?

O isolamento não me incomoda muito. Sou solitário. Não sinto solidão. No entanto sinto falta de dar uma volta. Gosto muito de shopping, ver vitrine e tomar um bom café. Isso é impossível agora. Tenho evitado ver em excesso notícias sobre a pandemia. Vi tantas que já sei tudo sobre a Covid-19. Mais um pouco e serei infectologista (risos). Tenho visto filmes, séries, algumas totalmente idiotas. E relendo livros que li na juventude: A pele, do italiano Curzio Malaparte, que mostra o quanto a guerra pode nos fazer sórdidos e maus! Liliana Cavani transformou em filme. O Estado espetáculo, de Roger Gérard Schwartzenberg, aborda o quanto partidos políticos se apagam perante seus candidatos superstars. e um livro recente, A canção de Kahunsha, de Anosh Irani, que conta a vida de três crianças em Mumbai (Índia). 

 

 

 

 

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