Diversão e Arte

Roteiristas de A vida e a história de Madam C.J. Walker falam sobre a trama

Minissérie da Netflix retrata trajetória de Madam C.J. Walker, primeira mulher negra a se tornar milionária pelo esforço próprio. Saiba detalhes do projeto

Correio Braziliense
postado em 10/04/2020 06:02
A vida e a história de Madam C.J. Walker
Por pelo menos duas semanas, a minissérie A vida e a história de Madam C.J. Walker figurou no top 10 brasileiro da Netflix após o lançamento na plataforma em 20 de março. Com quatro episódios, a trama gira em torno de uma figura icônica para a comunidade negra estadunidense e, até então, desconhecida no Brasil — a não ser pela menção no projeto Histórias de ninar para garotas rebeldes. É a norte-americana Sarah Breedlove, filha de escravos que viveu entre 1867 e 1919 nos EUA e foi a primeira mulher negra a se tornar milionária por esforço próprio, devido ao lucro de uma empresa de produtos de linha cosmética voltados ao cabelo afro.

A história de Madam C.J. Walker, como ficou conhecida Sarah, ganhou primeiro os livros. A biografia On her own ground (ainda sem tradução para o português) foi escrita pela jornalista A’Lelia Bundles, que é descendente da empreendedora. Até que, neste ano, foi para as telinhas sob direção de DeMane Davis e Kasi Lemmons, com adaptação de roteiro de Nicole Jefferson Asher, Elle Johnson, Janine Sherman Barrois, Tyger Williams e a própria A’Lelia. Na produção-executiva grandes nomes, como LeBron James e Octavia Spencer, que também dá vida à protagonista.

A minissérie se passa em St. Louis em 1908, quando o espectador é apresentado à Madam C.J. Walker, ainda como Sarah, uma mulher sem autoestima, com perda de cabelo e um histórico de violência doméstica em meio a um contexto de 50 anos da abolição da escravidão. Tudo muda quando ela descobre um produto que retoma o crescimento dos fios. Com as novas madeixas, a protagonista ganha confiança e vai atrás dos sonhos. O primeiro era largar o emprego de lavadeira de roupas para vender o produto. Sem ter essa oportunidade por conta da aparência, decide criar ela mesma o cosmético.

“Eu era familiar com a história da Madam C.J. Walker desde quando era mais nova. Mas, basicamente, achava que ela tinha inventado o pente quente, o que descobri depois que não era verdade. (Risos). Quando li a biografia percebi que havia muito mais do que eu imaginava, como o jeito natural dela no negócio. Ela era uma mulher à frente do tempo dela, uma visionária”, defende a roteirista Nicole Jefferson Asher.

Em quatro episódios, a minissérie se destrincha sobre a história de C.J. Walker, desde o começo humilde até se tornar numa grande empreendedora, já morando em Nova York. A trajetória tem altos e baixos, e, apesar de dura, é retratada na trama com toques de realismo fantástico — como as cenas que recriam uma luta de boxe —, muitas cores e um certo humor.

Narrativa


“O que eu queria fazer era encontrar um jeito de contar essa história e de comunicar como ela era visionária, que ela não pensava como as outras pessoas daquela época. E que ela era uma importante mulher de negócios e pioneira, num mundo dominado por homens. Ela merece ser reconhecida pelo jeito que modernizou a indústria da beleza. Daí veio a ideia de usar alguns elementos de realismo fantástico para tentar comunicar essas ideias e visões dela, sob esse ponto de vista, de que ela não via o mundo como as outras pessoas”, explica Nicole. “Colocamos humor, porque as pessoas podem curtir e ser entretetidas. As pessoas estão acostumadas a ver produções históricas sobre pessoas de cor com um aspecto de brutalidade. Queríamos um lado de inspiração, com piadas, com roupas lindas. O realismo fantástico tornou tudo pop”, completa Janine Sherman Barrois, roteirista e produtora-executiva.

A vida e a história de Madam C.J. Walker

Outro aspecto de destaque da atração é o elenco encabeçado por Octavia Spencer — numa ótima atuação como Madam C.J. Walker — e com nomes como Blair Underwood (Charles James Walker, segundo marido da personagem), Tiffany Haddish (Lelia, a filha), Carmen Ejogo (Addie, ex-patroa) e Garrett Morris (Cleophus, sogro da protagonista). Assim como, na frente da tela, a presença é majoritariamente negra, atrás também, fato raro no mundo televisivo e do audiovisual, em geral.

“A maior parte dos nossos departamentos foi formada por mulheres negras. Definitivamente queríamos pegar essa mensagem e esse espírito de Madam C.J. Walker colaborando com outras mulheres dentro do projeto. Não planejamos isso, mas aconteceu”, analisa Nicole. “Pensamos ser importante ter mulheres negras nesse projeto, primeiramente, porque demos oportunidade que outras mulheres negras contassem a história. Normalmente não somos capazes de contar nossas próprias histórias”, completa a roteirista e produtora-executiva Elle Johnson.

Temas


Apesar de se passar nos anos 1900, a história consegue dialogar com os dias de hoje. A começar, claro, por retratar a relação do cabelo com a autoestima. Aborda, ainda, racismo, sexismo, colorismo, violência doméstica, machismo, feminismo e empreendedorismo. “A história de Madam C.J. Walker é uma história sobre beleza. Nós percebemos que não podíamos falar de beleza sem falar de colorismo. É um problema que afeta não só as pessoas negras, mas todas as raças e nacionalidades na Terra, o julgamento sobre ser branco ou mais escuro. Era importante falar disso e especialmente porque Madam C.J. Walker fez parte da primeira geração de afro-americanos nascidos sem ser escravos. Foi a primeira vez em que os negros podiam descobrir como era ser americanos e qual era o lugar deles nesse país”, revela Nicole.

Até sexualidade, que costuma não aparecer em obras de época, está retratada pela história da filha de C.J. Walker, Lelia. “Lelia Walker é uma personagem fascinante. E queríamos mostrar o escopo real das mulheres negras naquele tempo. Quando você fala de algo de época, não vemos lésbicas e gays, não se vê gente de outras sexualidades explorada como personagem. Essa foi uma grande oportunidade. Queríamos mostrar a jornada dela, não como alguém que estaria na sombra da mãe, mas quem ela era”, comenta Elle.

Mesmo com temas fortes e duros, a grande mensagem que a equipe inteira quis passar era de esperança. O grande objetivo de contar a história de C.J. Walker era inspirar outras pessoas. “Eu acho que sabíamos que queríamos que as pessoas entendessem que não importa a circunstância em que você está, não importa o que falem de você, mas que você pode sair dos obstáculos. Madam C.J. foi uma mulher que não aceitou “não” como resposta. Ela tinha uma visão clara do que queria fazer e foi atrás disso. Correu atrás de um sonho por ela, mas também por outras pessoas. Acho que ficaríamos felizes se as pessoas pudessem tirar disso tudo que você pode ter sucesso por você, e mais ainda quando pode ajudar outras pessoas”, afirma Elle.

“Adicionando a isso, acho que uma das mensagens é que se você tem um sonho, você ter que ir em frente. Nesse momento de quarentena e em que nos questionamos sobre o que queremos fazer no mundo e quando olhamos Madam C.J. Walker 40 anos depois da escravidão ela fala que nada vai impedi-la de a ir atrás de seus sonhos. Acho que mulheres jovens e de qualquer idade consideram essa história, podem se ver. Li vários comentários de pessoas que assistiram e se sentiram inspiradas de ir atrás dos sonhos quando a saírem da quarentena”, completa Janine.

Entrevista / Elle Johnson, Janine Sherman Barrois e Nicole Jefferson Asher


Qual é a importância de contar uma história como essa na televisão?

Elle Johnson: É importante porque o poder que a televisão permite que as pessoas aprendam sobre essas histórias não conhecidas e não contadas que são realmente inspiradoras e podem afetar a vida das pessoas. A história dela, particularmente, é tão inspiradora que sentimos que era algo que precisava ser levado para o público. Ela foi uma mulher que nasceu alguns anos depois do fim da escravidão e teve que lidar com sexismo e racismo. Ela passou de uma lavadora de roupas de outras pessoas para uma mulher que criou um negócio. Ela queria que o negócio dela tivesse sucesso, mas queria incentivar e levar para o topo outras mulheres negras, as tirando do trabalho doméstico.
Janine Sherman Barrois: Desde o início, fiquei animada de ter a oportunidade de contar uma história que não era sobre o tempo, era um jeito moderno e icônico com as massas, de um jeito engraçado e de entretenimento. Isso era o que estávamos tentando fazer, entreter e educar e por isso tivemos sucesso. Fiquei honrada de colaborar com Nicole.


Apesar de ser uma narrativa dura, tem humor, uma trilha sonora impressionante. Como foi fazer isso?

Nicole Jefferson Asher: Parte da ideia e do que impulsionou, a série era não criar uma biografia tradicional, algo que fosse diferente. Queríamos colocar Madam C.J. Walker de um ponto de vista moderno. Isso era muito importante. Em termo de fazer parecer moderno e relacionável, trouxemos músicas de diferentes vozes negras. Todas as músicas são de mulheres negras do mundo. Queríamos músicas de diferentes períodos e de ritmos para se relacionar com o sonho de Madam C.J. Walker, que é relevante e relacionável ainda hoje. E usar a música como uma ponte para isso ajuda a se tornar ainda mais relacionável para muita gente e para um público mais jovem.
Elle Johnson: Isso foi importante para gente. Uma das coisas que todos nós falamos desde o começo, é queriamos contar a história de C.J Walker, e estabelecer o tempo, porque é uma biografia. Queríamos que os personagens fossem reais, com vidas reais e isso inclui o humor. Mostramos que não importa a adversidade, esses personagens conseguiram. Isso era importante para gente. Também achamos que Madam era uma mulher à frente do tempo, uma visionária, então quebramos algumas coisas no flashback com realismo, como a questão do boxe, a cena da bicicleta, da dança, que são coisas que mostram como ela era. Isso recai também na música. Nossa supervisora de música, Morgan Rose, deu ótimas sugestões desde o começo de usar músicas contemporâneas de mulheres negras e afros. E isso ajudou a trazer um ótimo tom para a série e para complementar a história visual. Os sons são interessantes e contemporâneos. Todos aspecto da série buscou complementar quem ela foi e como uma pessoa visionária.


Desde o início foi pensada como uma minissérie?

Elle Johnson: Acho que a vida dela é tão épica que seria difícil contar em apenas duas horas de um filme. Sabíamos que teria que ser mais do que isso. Acho que quando você olha para a história dela poderíamos ter feito uma série com mais de quatro episódios. Mas, para ser honesta, é muito caro fazer isso. Para ter certeza de que conseguiríamos fazer com o nível alto, representar o que queríamos de um jeito bom e sermos justas com a história... Foi o número perfeito. Também esperamos que esse formato seja inspirador para outras pessoas, outras histórias não contadas, pessoas de cor ou mulheres do passado que não ouvimos, possam ser feitas. Esperamos que esse seja um novo formato que inspire a contar esse tipo de história.


A equipe é formada majoritamente por mulheres negras na frente e por trás das telas. Como foi trabalhar desse jeito?

Elle Johnson: Foi incrível. Trabalho na televisão americana há 20 anos e essa é uma das daquelas experiências que senti que tive a oportunidade de trabalhar com outras mulheres negras, com que tinham similares. Janine e eu já trabalhamos na tevê há muito tempo e nunca havíamos trabalhado juntas num mesmo projeto, apesar de termos trabalhado nas mesmas áreas em programas polícias e dramas. Eu nunca tinha trabalhado com uma diretora fotográfica negra e Kira Kelly foi sensacional conseguimos colocá-la no projeto, assim como DeMane Davis, uma das diretoras negras. Foi ótimo ter mulheres negras envolvidas, porque saber que essa história era importante, por tratar de colorismo, racismo e sexismo, nos fez dar as mãos. Porque esse realmente foi um projeto escrito da perspectiva da comunidade negra. Podiamos contar da perspectiva que era realmente de dentro da história. Só podemos fazer isso com quem realmente entende a história e sente paixão. Porque toda vez que você faz alguma coisa para a televisão é difícil. É um milagre que qualquer série seja feita, francamente. 


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