Diversão e Arte

O filósofo Francisco Bosco aponta transições, na era Covid-19

"Na ameaça externa, é esperado que o senso de coletividade se aprofunde", diz o filósofo Francisco Bosco

Correio Braziliense
postado em 13/04/2020 04:13


Como ver o mundo nesses dias de pandemia? Qual lente usar para estudar e entender as relações humanas e sociais nesse momento? O Correio ouviu o poeta (doutor em teoria literária pela UFRJ) e filósofo Francisco Bosco sobre temas contemporâneos, como o egoísmo da elite brasileira e a necessidade de cuidar da alma. Integrante do programa Papo de segunda, no canal GNT, Francisco, filho do músico João Bosco e da artista visual Angela Bosco, tem um discurso “pesadamente leve” quando fala dos efeitos do novo coronavírus na sociedade. “Haverá uma transição lenta e truncada para a socialização, cujos termos ainda não estão claros. Esse momento catártico, em que jogaremos as máscaras para o alto, nos abraçaremos, dançaremos e beberemos, todos juntos, não deverá acontecer tão cedo”, analisa.


O mundo distópico que era moda na literatura virou realidade,
com a pandemia provocada pelo novo coronavírus. Que 
mudanças devem ocorrer na alma humana depois disso tudo passar?
 
Bem, antes do mais, é precisamente a “alma” humana quem mais está sofrendo. Da perspectiva da quantidade de óbitos, essa pandemia ainda nem sequer roça outras epidemias, que chegaram a dizimar partes significativas de populações de vários países. Mas os seres humanos são sociais, nossa alma floresce, vivifica no contato próximo com outros humanos — e o vírus atingiu isso como nenhum evento histórico foi capaz de fazer. Não é só o medo, como nas guerras (medo do inimigo, medo da arma de fogo), mas também a angústia. Em certa tradição filosófica e psicanalítica, a angústia é um afeto difuso, sem objeto claro e determinado. A angústia é um afeto disparado pela dúvida, pela indeterminação. Então é difícil falar sobre mudanças, porque sabemos muito pouco sobre como será o futuro, a curto e médio prazos.

As relações (ou não relações) humanas sofreram um baque.
A bolha digital já não satisfaz as pessoas que foram forçadas a mudar o ritmo de vida. Me peguei, por exemplo, a fotografar uma formiga 
carregando pedaço de pão que deixei cair. Pensei: essa formiga está ali há anos e nunca a percebi. Que delírio é esse? (risos)
 
Bem, as redes sociais digitais mobilizam sobretudo duas compulsões: por ocupação e por reconhecimento. Essas compulsões ainda nos acometem — vide a febre de lives, por exemplo. Mas o distanciamento social criou, ao mesmo tempo, uma nostalgia do mundo físico, e uma certa náusea do digital. Nesse contexto, as formigas têm mais chance de serem percebidas. (risos)
 

Saiba Mais

 
 
As redes sociais que antes eram abarrotadas de frivolidades,
da “irreal” imagem das pessoas, hoje se mostram 
espaços para reflexão, para solidariedade. Isso deve continuar depois de o isolamento social acabar? O que deve ficar (se é que vai) na essência das pessoas?
 
Redes digitais sempre foram fenômenos complexos. Há toda uma dimensão de frivolidade, narcisismo levado ao extremo, vício em estímulos sensoriais cada vez mais fragmentados. Mas há também a dimensão de espaço público, constitutivamente mais democrático que a esfera pública tradicional, aliás — embora essa democracia mais direta tenha acabado por fortalecer populismos, que têm toda uma dimensão antidemocrática. Em momentos de ameaça externa, é esperado que o senso de coletividade se aprofunde. Isso independe do mundo digital. Mas a outra dinâmica não é menos verdadeira. Como mostra a conduta de Trump, por exemplo, proibindo exportação de insumos e confiscando EPIs (equipamentos de proteção individual) direcionados a outros países. Nessas horas de escassez ocorre uma espécie de regressão civilizatória. Em um minuto, abandonam-se os organismos internacionais reguladores e defende-se uma soberania egoísta. Nesse sentido, o vírus pode ser aproveitado pelo antiglobalismo. É cedo para dizer o que prevalecerá.

No mundo pré-pandemia, havia um crescimento de “ideias” contrárias ao conhecimento científico, à cultura, à arte... As coisas podem mudar? Por que chegamos a esse ponto? O conhecimento perdeu valor?
 
Chegamos a esse ponto por causa dos fracassos acumulados pelas democracias liberais nos últimos 30 anos. Mais liberais que democráticas, essas formas sociais falharam em combater as desigualdades, concentraram um poder extremo nas mãos de elites, produziram nas sociedades um sentimento de cidadania afastada e impotente. Esses valores — ciência, arte, conhecimento — foram associados a elites liberais, nas quais enormes contingentes sociais não se reconheciam. Foi um processo longo, que remonta aos anos 1970, sob alguns aspectos. A crise de 2008, em termos globais, e de junho de 2013, quanto ao Brasil, foram a gota d’água. Não será fácil reverter esse processo, porque ele não é meramente racional. Envolve afeto, identidade, dimensões subjetivas e sociais profundas, que não se transformam do dia pra noite.

Assistimos a pessoas à rua e conclamando outras a saírem do isolamento social no auge da contaminação. Como a antropologia analisa reações tão absurdas?

 
Em parte, isso é consequência da estrutura cognitivo-afetiva que se formou em torno da figura de Bolsonaro. A base bolsonarista é binária e pensa em termos de oposições simples. O vírus veio da China, a China é comunista, os comunistas estão sempre conspirando para tomar o poder, então deve-se negar o vírus, proteger a liberdade, etc. O Congresso, o STF, os intelectuais, os cientistas defendem o isolamento social. Ora, esses são os inimigos, então temos que fazer o contrário. É assim que a base bolsonarista pensa. Por outro lado, há nesse comportamento dilemas morais, subjetivos e sociais que são legítimos. Lamentavelmente, Bolsonaro os vocaliza da pior maneira, e isso se espalha por sua base. Mas esse clamor pela volta às atividades sociais, embora sem dúvida equivocado e irresponsável nesse momento, daqui a algumas semanas ou meses terá que ser discutido de forma racional, científica, e provavelmente envolverá decisões morais bem difíceis.

Nos primeiros anos do século passado, Oswaldo Cruz era atacado por tentar controlar as epidemias no Rio de Janeiro, como peste bubônica, febre amarela e varíola. Criou o cargo de comprador de ratos (funcionário que recolhia os roedores e pagava 300 réis por animal capturado). Mas o brasileiro, em vez de se aliar às ideias do sanitarista, começou a criar ratos para vendê-los. O Brasil não mudou?
 
O Brasil, como muitos países no mundo, tem um senso de coletividade muito fraco. Nossa origem institucional impediu que isso se formasse. Esse país foi antes de tudo um projeto capitalista, explorador. Tocqueville, em seu clássico A democracia na América, observa que os ingleses perseguidos, que enfrentaram o Atlântico rumo à América, o fizeram movidos por uma ideia: a ideia da igualdade (claro: exterminaram indígenas e escravizaram negros, mesmo após a revolução). Nós não temos esse traço em nossa certidão de nascimento. Ao contrário, a carta do achamento, de (Pero Vaz de) Caminha, termina com um pedido de favor. Nada menos republicano. Enfim, prevalece no Brasil o egoísmo social. Não por acaso ostentamos o título de país mais desigual do mundo, talvez ao lado da África do Sul.

(Re)Descobrimos um sentimento que há muito não circulava
pelas 
redes sociais: saudade. Depois dessa depressão toda,
vai ter muita festa (risos). Como lidar com a saudade?
 
Olha, infelizmente, salvo por um improvável medicamento supereficaz, essa festa não vai ser como desejamos. Haverá uma transição lenta e truncada para a socialização, cujos termos ainda não estão claros. Esse momento catártico, em que jogaremos as máscaras para o alto, nos abraçaremos, dançaremos e beberemos, todos juntos, não deverá acontecer tão cedo. Por outro lado, é provável que surja uma vacina em tempo recorde. Já se fala em seis meses, o que não tem precedentes na história da medicina. Mas pode acontecer, porque a situação é tal que autorizará protocolos inéditos, embora arriscados.

Como você vê o cenário político brasileiro, parece que o fundamentalismo ideológico está mais exacerbado? Para piorar, as políticas públicas não acompanham ss demandas sociais. Isso pode provocar mais rupturas na sociedade?
 
A única resposta ágil que tivemos foi decretar o isolamento social. Fizemos isso antes de vários países economicamente mais avançados. Como se tratava de uma decisão apenas política, não exigindo grandes esforços de coordenação e execução, pôde ser feito. E foi feito por governadores. De resto, quase tudo oscila entre a insuficiência, o atraso e a precariedade. As medidas econômicas demoraram mais do que deviam. Paulo Guedes resistiu o quanto pôde à conversão ao keynesianismo. Não é exagero dizer que foi o último dos liberais a fazê-lo. Hospitais de campanha foram construídos, mas faltam EPIs e tem sido difícil obtê-los. A testagem do Brasil é uma das menores do mundo. E, claro, Bolsonaro, mais paranoico do que nunca, faz tudo da pior maneira. Os cenários à frente são preocupantes, sob todos os aspectos: econômicos, sociais, políticos e institucionais.

A proliferação impune das fake news, o excesso de informações irrelevantes confunde as pessoas. Como fazer esse filtro? Como se educar e se vacinar contra esse mal moderno?
 
Não acredito que se possa combater isso apenas com medidas tomadas pelas grandes empresas de tecnologia. Essas empresas devem se responsabilizar, o Judiciário brasileiro também precisa debater mais profundamente e criar leis punindo certas práticas. Mas, de novo, fake news florescem dentro de um contexto cognitivo, afetivo, identitário e imaginário. Enquanto esse contexto não for transformado, combatê-las será em boa medida como enxugar gelo.
 
 

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