Diversão e Arte

A escrita como ritual de cura: Resenha do romance O peso do pássaro morto

Resenha do romance 'O peso do pássaro morto', de Aline Bei, editora Nós, vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2018 na categoria autor estreante/menos de 40 anos

Correio Braziliense
postado em 20/04/2020 19:05
Resenha do romance 'O peso do pássaro morto', de Aline Bei, editora Nós, vencedor do
Prêmio São Paulo de Literatura 2018 na categoria autor estreante/menos de 40 anos
Mario Quintana certa vez escreveu um poema triste e belo transformando cartas tristes em barcos de papel que seguiam pelo rio do tempo.

Assim, as tristezas eram a matéria-prima do barco que, de forma bela, singrava o rio.

Há duas semelhanças imediatas com o livro de Aline. Primeiro, O peso do pássaro morto ilustra a vida de uma mulher em episódios, distribuindo-os na linha do tempo como se fossem curvas em um rio.

Segundo, ao nos deparamos com a dedicatória do livro, para o pássaro que morreu nas mãos da autora, assustado, quando esta tentava abrigá-lo, entendemos que, no livro de Aline, assim
como no poema de Quintana, as alegrias e tristezas podem ter a mesma origem. Em outras palavras, é a mesma matéria-prima que dará forma a uma ou a outra realidade que se apresenta em potencial.

No livro de Aline, contudo, ao contrário do poema de Quintana, são as possíveis alegrias que se transformam em tristezas, a poesia que se transforma em papel amassado antes que este
possa se transformar em barco.

As belezas são destruídas através de mãos severas de predadores ou do acaso. Estas pegam papéis antes cheios de poesia, os amassam, os transformam em papéis-pedras, que por sua vez derrubam pássaros.

Os sonhos da narradora estão fadados a não se tornarem realidade, e ela a não se tornar aeromoça, por exemplo.

Como então dar voz a essa personagem íntegra, mas sofrida, que vai sentindo cada perda em seu corpo como se a sentisse em sua alma? Como fazê-la contar sua história se contá-la seria
contar uma história de perdas somente e a cada episódio apenas se acrescentaria mais uma perda?

Aline encontra uma forma de reverter esse processo. E reverter essa dinâmica, em si contraditória, é uma epifania.

Assim, se acariciar o pássaro ocasiona sua morte, talvez o melhor seja protegê-lo de outra forma. E se contar cada história significa revelar uma perda, perder mais, talvez o melhor seja
inventar uma nova maneira de contar histórias, uma que quase não seja contá-las, mas recitá-las, cantá-las, recriando-as em versos.

A autora decide dar voz à sua narradora tomando nas mãos esse pássaro metafórico, que representa a personagem ferida, mas com dedos mágicos. É como se Aline, adotando uma forma antinatural de escrita, criasse uma espécie de ritual para curá-lo, para ressuscitá-lo, algo semelhante ao que se passou quando um afago matou o pássaro da dedicatória, mas agora com resultado contrário.

De forma sobrenatural, (pois é através de versos que constrói seu romance) Aline consegue trazer o pássaro do livro de volta à vida. De forma sobrenatural, a personagem vive um pouco mais a cada perda que narra.

O ritual se parece com a cura que o senhor Luís, o amigo de infância da heroína oferece. O místico que ela acredita ter poderes sobrenaturais, ser capaz de curas impossíveis, como trazer
os mortos de volta à vida, mas cuja cura, pode-se entender, não consiste em nenhuma mágica, ao menos não uma oculta, inacessível, mas uma baseada no poder da palavra, das histórias,
dos ensinamentos simples.

Ensinamentos que podem, às vezes, significar como suportar uma dor quando as circunstâncias indicam ser impossível superá-la. Curar-se do mal de acreditar na vida e por isso reinventá-la a nosso modo, criando barcos, aviões e pássaros à nossa maneira.
No caso da personagem, com a "cura", nessa "nova vida", o que podemos encontrar é algo como se o corpo de um pássaro morto e sem peso estivesse consubstanciado em uma página de papel que vemos flutuar ao vento tão somente, que não pode ser o pássaro real, nem o pássaro de papel dobrado, mas apenas seu voo. A personagem, ao narrar sua história, se reconstrói, mas pelos sentimentos cuidadosamente colocados no papel. Sua história é
contada, mas através dos papéis-pedras que algozes atiraram para matá-la. Papéis-pedras amassados que deveriam ter se tornado barcos de papel, ou aviões de papel, ou qualquer
outra coisa de que os sonhos são feitos e só não se tornaram porque algozes destruíram a sua poesia, mas que no método de Aline são cuidadosamente desdobrados, desamassados. Tudo
para que, mesmo em meio à dureza dos acontecimentos narrados, possam ser o que sempre foram, pedaços de papel com vida (agora com um significado transcendente), com a poesia
possível, novamente e para sempre o canto do pássaro.

Rafael de Oliveira Fernandes é formado em Direito pela USP, escritor, autor dos livros de poesia Menino no Telhado e dos romances Vista parcial do Tejo, e Baseado em
fantasmas reais.

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Tags