Diversão e Arte

Artista plural

Correio Braziliense
postado em 30/04/2020 04:07
Cantora e atriz Fernanda Jacob criou em Brasília veia multifacetada artística. Ao Correio, ela relembra 
e analisa trajetória


A vida de Fernanda Jacob divide-se entre Sobradinho e Plano Piloto. As duas regiões tiveram um papel fundamental no fazer artístico da brasiliense que transita e une a música e o teatro em seus trabalhos. Ao longo da carreira esteve em diferentes movimentos artísticos, como Samba da Rua, Grupo Embaraça, Bloco Essa Boquinha Eu Já Beijei e banda Contém Dendê, desde a época na UnB até o momento de projeção nacional quando participou do espetáculo musical sobre Dona Ivone Lara, com sessões no Rio de Janeiro e em São Paulo. Mais uma personagem do especial Conversas candangas, Fernanda compartilha no bate-papo a seguir a trajetória na capital, que teve influência direta na criação de uma identidade artística.
 
Como foi a sua infância e adolescência na cidade?
Ela pode ser dividida em dois momentos. Em Sobradinho 1, que é onde nasci. Passei boa parte da infância e início da adolescência explorando essa cidade que tem uma cultura muito forte. Eu ia aos clubes onde tinham muitas rodas de samba. Posso dizer que a minha vontade de ser cantora de samba foi Sobradinho quem me deu, com a Bola Preta, escola de samba de lá. Eu era vizinha do Seu Teodoro e acompanhava muitos os ritos que aconteciam lá, nas igrejas etc. Essas coisas que acontecem nas satélites que a gente tem a oportunidade de participar. Na adolescência, passei mais no Plano Piloto, porque comecei a estudar lá. Ia muito à Esplanada (dos Ministérios), porque quem mora nas satélites, no fim de semana, vai ao Plano. Minha família era uma dessas. A gente ia ao Conjunto Nacional e ao Parkshopping. Costumava visitar a Esplanada, passar um bom tempo entre os ministérios e a Catedral.

Como foi acompanhar a evolução da capital pelos locais que morou?
Fui acompanhando exatamente nesses pontos turísticos que eu ia desde a infância com a minha família. Passei a ver que, por exemplo, o número de pessoas aumentou bastante. Comecei a ver que a cidade foi se transformando. A W3, antigamente, tinha muito mais árvores. Era um lugar que eu gostava muito de passar na minha infância, porque eu achava que entrava num outro mundo. Hoje em dia, quando passo, vejo uma outra camada da cidade, que foi colocando as pessoas cada vez mais em um espaço amplo. Confesso que sinto saudade do tempo em que a cidade era mais verde, porque existia a possibilidade do céu ficar mais lindo ainda. É uma memória muito forte da infância, olhar essa cidade arborizada andando de ônibus.

Como a arte teve início para você? O que veio primeiro na sua vida:a música ou o teatro?
A arte teve início na minha vida desde muito cedo. Recordo-me, aos 8 anos, comprando as revistinhas nas bancas para aprender a tocar violão e algumas músicas. Aprendi violão, teclado e cavaquinho sozinha. Na escola, também era muito influenciada a fazer teatro. Escrevia algumas peças, em que eu dirigia os colegas e atuava. No momento de prestar vestibular, eu já não tinha outra opção, a não ser fazer artes cênicas. Eu vi que era um espaço em que me contemplava para eu ser eu mesma, porque quando você passa por vários processos sendo mulher preta na vida e descobre que sofre influências do racismo, do machismo e do classismo, começa a tentar se encontrar em algum espaço. Na arte, eu pude expressar algumas dores, alegrias e é onde eu me sinto inteira, viva. Então, desde cedo, fui percebendo que esse era o melhor caminho para poder me tornar uma pessoa que não tivesse tanto medo de viver, que não deixasse que a sociedade dissesse o que eles pensam sobre mim e me paralisasse. A arte sempre me movimentou. Não consigo nem dizer o que veio primeiro. Os dois sempre estiveram muito próximos.

Quais espaços da cidade fizeram parte do seu fazer artístico?
Não tem como falar do meu fazer artístico sem falar de um espaço que é de muita importância, onde me deu a identidade de ser uma mulher preta e me fez criar arte de um jeito mais livre e com a minha cara. Não é só porque fiz o curso de artes cênicas lá, mas porque é um espaço em que eu pude me encontrar com outras pessoas que eram parecidas comigo e pude trocar. Esse espaço com certeza é a Universidade de Brasília (UnB). Digo que existe minha vida antes da UnB e depois. O meu curso me deu a possibilidade de passar por tantas pessoas diferentes, que me deram a possibilidade de hoje ser essa artista que vai para várias camadas, multifacetada.

Você integra o Grupo Embaraça e sempre esteve ligada às rodas de samba da cidade. Como foi o processo de fazer parte de 
movimentos e grupos artísticos na cidade?
Fazer parte dos movimentos e grupos artísticos da cidade foi a ligação que consegui fazer entre a música e o teatro. Tive a possibilidade de conhecer muitas pessoas na música por conta de trabalhos na UnB e festivais, como o Finca. Quando comecei a mexer com música de um jeito mais profissional, fui tentando integrar o teatro dentro disso. Como eu assino as direções musicais do Grupo Embaraça, trouxe muita gente da música para o teatro. A banda Contém Dendê surgiu por causa do teatro. Eu queria formar uma banda só com mulheres pretas e fui lembrando de várias meninas que estiveram comigo em outros movimentos e grupos. Criei um grupo chamado Samba da Rua, que deu uma parada, mas esteve oito anos na via Telebrasília junto a comunidade. É um dos projetos que me contemplavam no sentido de estar sempre junto à comunidade.

Nos últimos anos, a cidade tem se aflorado cada vez mais artisticamente, como vê isso? 
Acho que Brasília artisticamente é um espaço de muita potência. Você vê pela formação desses músicos. Existe músico que frequenta Clube do Choro, Escola de Música ou a própria UnB, além das rodas. Música em Brasília é muito voltada ao encontro, ao juntar os amigos e simplesmente se expressar artisticamente. A gente tem um fazer musical muito amplo e de solidão muito forte. Essa camada do encontro e de estar rodeado de pessoas, mas, ao mesmo tempo, estar só. Você tem a possibilidade de seguir várias vertentes. Eu vejo que Brasília sempre me possibilita a estar me inovando. O que mudou é que mais jovens estão tendo a possibilidade de fazer música e integrar algum espaço que possa auxiliar, seja num curso ou num projeto social em uma outra cidade. Isso faz com que a cara artística se modifique cada vez mais e que firme uma identidade voltada para o que a gente passa e vive na cidade, como trejeitos e espaços físicos que só a gente sabe como é. O fazer artístico teatral tem a mesma amplitude. Temos vários grupos que seguem várias vertentes. Acho que a gente tem uma possibilidade e uma sede de pesquisa muito forte, seja ela no campo intuitivo, ou no campo acadêmico. Isso vem muito desse movimento de grupo, de querer debater e instigar as pessoas.

Como assim?
A gente ainda tem isso muito marcado no corpo como identidade, mas no passado. Porque com essa coisa da Lei do Silêncio fez com que a gente recuasse e fizesse esses encontros meio que secretos. A arte é troca, é encontro, se você bloqueia isso, o que sobra para a gente? Não quero só resgatar, quero vivenciar isso novamente. Do tempo em que se tinha choro nas bancas, música ao ar livre. É uma coisa que sinto muita falta na cidade.

Sendo mulher e negra, como avalia a importância de artistas como você para a história da capital?
Para mim, é muito importante. Foi muito forte ver que eu estava levando um pouquinho das mulheres pretas de Sobradinho que me criaram e me fortaleceram. Um pouquinho da minha história mesclada com a essa inspiradora e potente mulher que é a Dona Ivone Lara. Abrir a possibilidade para outras mulheres negras da cidade insistirem. É muito mais difícil ser uma artista negra nesse país. A gente luta por espaço e representatividade. Eu criei os meus trabalhos e essa minha criação pôde se expandir e me fez estar em um espetáculo de uma dimensão como essa, uma brasiliense contando a história de Dona Ivone Lara e essa oportunidade veio da minha escola do samba aqui. São os artistas daqui que me inspiram. Aqui é uma casa de Cássia Eller, de Fernando César, de Dhi Ribeiro, de pessoas que, pra mim, fazem parte do que eu quero ser como artista.

Nos últimos anos, Brasília ficou, cada vez mais, com menos espaços para o teatro. Mas o Grupo Embaraça está sempre achando locais, principalmente fora do Plano Piloto. Qual é a importância da descentralização da arte?
A gente combate a falta de espaço dando oportunidade para espaços que são de grupos, que também pertencem às satélites. Esses teatros não têm apoio e visibilidade, contam muito com pauta e dinheiro que entram para o grupo. A função do Grupo Embaraça é levar esse público para outras cidades do DF e esses espaços que contam com esse dinheiro de pauta. A forma que a gente tem para combater a escassez é olhando mais ao redor. Construir um público que vá a esses lugares. Olhando ao redor você possibilita a descentralização da arte. É sua função como artista na vida.

O que você tem feito no período de quarentena?
Tenho usado para fazer um novo espetáculo, um segundo solo. Tive um primeiro chamado Ninguém canta para ninguém, que falava sobre amor de um jeito ritualístico. E quero criar um outro solo chamado A falante, no qual darei espaço para a palavra, conversar com o público, ter um discurso mais para a contação de história, mas também para meus depoimentos, em que uso recurso de ouvir outras pessoas contando minhas histórias. Quero abrir um espaço para denúncia. Quero falar muito do que vivo, do que ainda o racismo transpassa sobre mim. Estou usando para escrever, de fato, esse espetáculo.

Quais aspectos da arte você acha que podem ter um papel fundamental, principalmente no momento pós-Covid-19?
Acredito que muitas pessoas que não davam o valor para a cultura, neste exato momento estão usando da arte para poder passar tempo e, principalmente para a saúde mental. Essa arte que vem com intuito de salvar mesmo, que faz com que a gente possa ter pensamentos críticos e que tira um pouco essa venda que colocamos às vezes como sociedade. A arte está fazendo a gente refletir sobre o que vem depois, como podemos nos modificar como sociedade, como pessoas. 
 
 
 

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