Correio Braziliense
postado em 04/05/2020 04:15
O sonho de Lilian Raiol sempre foi atravessado por Brasília. E o violino, aprendido desde a primeira infância, sempre fez parte desse cenário. Spalla da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro (OSTNCS), cargo mais importante do conjunto depois do maestro, a musicista de 39 anos nunca enxergou a própria trajetória sem o Plano Piloto e, mais ainda, sem a orquestra fundada por Claudio Santoro nos anos 1980.
Filha de um militar que sempre gostou de música e de cantar, Lilian nasceu em Macapá, mas saiu de lá aos 6 meses para morar em Manaus, onde ficou até os 5 anos. Os pais, paraenses, desembarcaram com a família em Brasília em meados dos anos 1980 e, aos 10 anos, Lilian já estava matriculada na Escola de Música. “Eu tinha educação musical em casa, meu pai nos ensinou a cantar e eu cantava desde os 5 em igreja. Meu pai tocava violão e ele viu que eu tinha afinação, quis investir para que eu estudasse música”, conta.
O violino entrou para a vida de Lilian quando ela completou 11 anos. A origem do fascínio pelo instrumento, ela não sabe contar ao certo, mas lembra da primeira vez que se deparou com esse conjunto harmônico de madeiras e cordas. “Nossa igreja tem uma orquestra grande e ali foi a primeira vez que vi um violino. Aquilo me chamou a atenção porque achava lindo. Foi amor à primeira vista”, lembra. Na época, foi estudar com a professora Denise Gomes, também violinista da OSTNCS, o que ajudou a alimentar um olhar de admiração para a sinfônica. Aos 17, Lilian entrou para o curso de música da Universidade de Brasília (UnB) e fez licenciatura em música, sob a tutela da professora Ludmila Vinecka, outra integrante da orquestra.
A convivência com músicos da OSTNCS e a presença constante nas apresentações fez Lilian ter certeza de que queria integrar o grupo. No entanto, ela ainda precisaria percorrer um bom caminho, já que a orquestra é um órgão público para o qual só se entra por meio de concursos que, ao longo do tempo, são raros. Então, quando terminou a UnB, Lilian aproveitou que o pai, funcionário de hospital militar, havia sido removido para Pequim e foi morar na China. Passou dois anos no país, fez master classes no Conservatório de Pequim, estudou com um professor particular e decidiu se dedicar a aprender mandarim e um pouco mais sobre a música chinesa.
Experiências
Como o chinês é uma língua tonal, Lilian percebeu que músicos têm facilidade para aprender porque conseguem distinguir as diferenças sutis entre os tons. “Deu para aprender um pouco, a música ajuda muito, alguns sons são como se fossem uma nota aguda sustentada, o ouvido ajuda bastante”, conta a musicista que, além de ter aulas com um violinista da orquestra de Pequim, a maior do país, teve oportunidades enriquecedoras como a de assistir ao violinista Itzhak Perlman tocar no Grande Salão do Povo. “Meu professor perguntou se eu não queria conhecer a música chinesa, então fui explorar, estudei um pouco do repertório tradicional chinês, pra conhecer”, lembra.
Ao voltar ao Brasil, em 2003, Lilian precisou traçar planos profissionais. O concurso mais recente para a OSTNCS já havia sido realizado e ela acabou por voltar os olhos para São Paulo. “Então fui, em 2004, para fazer as provas para orquestras semiprofissionais”, lembra. Acabou entrando para Orquestra de Câmara da USP e se tornou academista (o equivalente a estagiário) da Sinfônica da USP. Para não deixar as aulas de lado, ela começou a ter aulas com Andreas Uhlemann, violinista da Osesp.
Para um músico, especialmente os jovens, ter um professor como referência, mesmo depois de formado e já iniciado na vida profissional, é fundamental. “É como se fosse um técnico”, conta Lilian. “Você é o jogador numa equipe profissional, mas precisa daquele olhar de fora, de alguém que entende e vai te ajudar a pensar de maneira diferente ou até com uma visão técnica mesmo. Sempre tem o que aprender, acrescentar.”
Nesse período, ela tratou de ampliar os horizontes o máximo possível. Se inscreveu para tocar com a Orquestra das Américas e com a Orquestra Mundial, que reúnem músicos das mais diversas nacionalidades, e fez três turnês por países como Canadá, Espanha e China. “São músicos de todos os lugares, muitos europeus, jovens. Foi incrível ter tocado em teatros grandes e modernos e com pessoas que compartilham aquela adoração pela música que todo jovem instrumentista tem”, garante.
Mas Brasília não saía da mira da musicista, na época com 24 anos. “Brasília é meu lar, minha casa, aqui me sinto tranquila, bem. E São Paulo é uma loucura, tudo bem que nem se compara a programação musical, mas eu acordava antes das 6h para estar na orquestra”, reflete. “E tinha o apego à orquestra, cresci vendo a orquestra. É um apego sentimental e emocional.”
Em São Paulo, ela ainda integraria a Orquestra Experimental de Repertório, formação de prestígio e muito seletiva quanto aos membros, uma espécie de pontapé importante para uma carreira nacional e internacional. Mas Lilian começou, então, a ouvir dos amigos que haveria concurso novamente para OSTNCS. O edital saiu em 2005, ela fez a prova, passou e não hesitou: largou tudo em São Paulo para voltar para Brasília.
Estudos
Em Brasília, o ritmo mudou. Lilian estava acostumada a ter cerca de 10 dias para aprender um repertório, mas as apresentações da OSTNCS são semanais e ela precisou mergulhar em partituras que nunca havia estudado e com pouquíssimo tempo para aprender. “Entrei no naipe dos primeiros violinos e passei ali os primeiros seis anos aprendendo repertório. A vivência de uma orquestra profissional que tem um concerto toda semana é muita coisa. No início, você não conhece tanto o repertório, tem que aprender tudo novo a cada semana, tem cinco dias para estar no seu melhor. Em pouco tempo aprendi todas as sinfonias de Brahms, Beethoven, Tchaikovsky. E continuei estudando”, explica.
Em 2011, ela se candidatou para fazer a prova de concertino, o violinista que senta ao lado do spalla que, na época, era a violinista Kátia Pinheiro. Lilian passou na prova interna e, quando a colega se aposentou, em 2016, aceitou o convite do maestro para que seguisse como spalla.
É um cargo especial em qualquer condição, mas que ganha dimensão mais simbólica por dois fatores. “O mundo musical erudito sempre foi muito fechado, até o início do século 20 eram, basicamente, só homens. As orquestras não aceitavam mulheres, principalmente pela questão da gravidez, para não desfalcar o grupo. E até hoje é um pouco assim. Mulher tem que mostrar serviço duas vezes mais que o homem para conseguir valer uma vaga. E spallas, então, tem muito poucas”, lamenta. “E negras, então, nem se fala. Até hoje, nas orquestras brasileiras, a quantidade de mulheres spallas é muito pouca e de negros, de forma geral, também. Mas esses projetos de inclusão social através da música têm ajudado pessoas carentes a construir carreira através da música.”
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