Diversão e Arte

Flávio Migliaccio olhou pelas crianças e representou periféricos

O país perdeu, ontem (4/5), o ator Flávio Migliaccio, 85 anos: morreu o ator naïf das palavras cortantes

Correio Braziliense
postado em 05/05/2020 08:46
Detalhe grafado na camicleta:

A comunicação direta com espectadores de todas as classes e uma identidade traquina junto ao público infantil foram algumas das qualidades mais presentes na vida e na carreira do ator, diretor e roteirista Flávio Migliaccio, que morreu ontem (04/05), aos 85 anos. Depois de vender verduras, nas ruas em que foi de engraxate a pedreiro, passando ainda pelo batente como metalúrgico, Flávio se encontrou na carreira de artista, favorecida pela entrada num grupo da Igreja Matriz do Tucuruvi. Foi a ponte para que chegasse a integrar o Teatro de Arena, experiência que fortaleceu a carreira de 65 anos. Migliaccio foi encontrado morto no sítio dele, em Rio Bonito (RJ). Na manhã de ontem, o caseiro foi quem acionou a Polícia Militar. Agentes investigam a autoria de uma carta, de tom melancólico, cujo conteúdo circula pela internet, e é atribuída ao artista.
 
Nos escritos está descrita descrença na humanidade e há tom de decepção frente ao “tipo de gente que acabei encontrando”, pelo que demarca o autor. Um trecho demarca que a “velhice neste país é (…) como tudo aqui”, enquanto, na conclusão da carta, se faz sublinhar o pedido para que todos “cuidem das crianças de hoje”. Todo o conteúdo contrasta com a felicidade do artista, durante discurso de homenagem à carreira, em evento de 2014, no Rio Grande do Sul. “Gosto de fazer as pessoas rirem: o ser humano procura a felicidade. Num Brasil tão estraçalhado, responder pelo alívio do sofrimento é uma dádiva. Digo isso, não por questões políticas. Acredito, sim, que a sociedade esteja mal organizada. Quando o homem luta pelo dinheiro, ele acaba com a espécie humana. Se eu sou legal, vou ter ações boas, independente de ser de esquerda ou de direita. Buda pregava: não interessa em que se acredite; o resultado vem de ações, do que a gente sente e do que somos”, disse, na ocasião de festejos.

Ilustre carreira


A primeira peça no extenso currículo do artista Eles não usam black-tie, com o cunho social aflorado pelo autor Gianfrancesco Guarnieri, dava pistas do engajamento e dos temas sociais que estimulariam o ator cuja primeira participação no cinema veio em 1958, com O grande momento (do diretor Roberto Santos, com quem filmaria ainda A hora e a vez de Augusto Matraga, de 1965, e O homem nu, 1968).
 
A produtividade na carreira o levou à marca dos sete filmes dirigidos, aos 14 roteiros desenvolvidos e a mais de 90 participações como ator, entre filmes, séries e novelas. "Difícil é não trabalhar e, por mim, aceito tudo: já fiquei um ano interpretando uma árvore no (humorístico) Viva o Gordo", contou, em entrevista ao Correio. Um curso de interpretação com Ruggero Jacobbi, e participações em peças assinadas por referências nacionais como Oduvaldo Vianna Filho e Augusto Boal aguçaram a capacidade cênica do artista.
 

Saiba Mais

 
 
Ainda que o reconhecimento maior tenha vindo do público, Flávio foi consagrado pelo Troféu Oscarito, no Festival de Gramado, há seis anos; por duas premiações da Associação Paulista de Críticos de Arte (com a recente novela Órfãos da Terra, em que deu vida a Mamed Al Aud, e por A próxima vítima, novela de 1995) e ainda despontou como melhor revelação, no Troféu Imprensa, pela novela O primeiro amor (1972), em que, ao lado de Paulo José, interpretou Xerife, um dos mecânicos inventores da camicleta (misto de caminhão e bicicleta, recheado de utilitários). Shazan, Xerife e Cia. foi a série derivada a capitalizar o sucesso da novela. A dupla ainda foi reunida em 1998, pelo autor de Era uma vez, Walter Negrão, para uma participação especial.
 
A dupla Migliaccio e Paulo José já havia sido ativada pelo humor do dramaturgo Domingos Oliveira, no filme Todas as mulheres do mundo (1967), em que Paulo confidenciava as desventuras amorosas ao amigo Edu (Migliaccio). Rodeado de colegas como Aracy Balabanian, Hugo Carvana, Andrea Beltrão e Rodolfo Arena, Flávio mantinha acesa a centelha da galhofa. Pelo que ressaltava, a graça vinha com naturalidade, dados os exageros de gestos e sentimentos com a origem italiana.
 
Seu Chalita, o viúvo libanês visto no seriado Tapas & Beijos (2011), foi um dos marcos na carreira do artista. Do mesmo modo, o aposentado Fortunato (de Passione), o canguinha Seu Moreira (amor de Dona Armênia, em A rainha da sucata, 1990) e o trambiqueiro Jacques (visto em Senhora do destino) se tornaram inesquecíveis.


Espírito juvenil 


Paulistano do subúrbio de Jaçanã, Flávio Migliaccio teve 16 irmãos, todos filhos do pai, barbeiro, e da mãe, dona de casa. Ele era irmão de Dirce Migliaccio (morta em 2009), atriz consagrada por viver a boneca Emília, na tevê, em Sítio do Pica-Pau Amarelo (programa do qual Flávio tomou parte, como Eremita, até 2006). Na tevê,ele ainda brilhou em novelas como Caminho das Índias (2009) e Êta mundo bom!, atualmente, em reprise pela Rede Globo. Na sétima arte, houve impulsos e colaborações de ouro, com os longas Os mendigos (que ele dirigiu, em 1963, com Ruy Guerra no elenco), isso, um ano depois de Cinco vezes favela, cujo um dos episódios (de Leon Hirszman), ele ajudou a roteirizar, dando vida ainda a um personagem favelado na tela.
 
No cinema, entre comédias erotizadas do porte de Como vai? Vai bem? (1969) e Os machões (1973), a real projeção do artista chegou com o sucesso do irreverente e ingênuo personagem Tio Maneco, desfilado nos longas As aventuras com Tio Maneco (1971), O caçador de fantasmas (1975) e Maneco, o super tio (1978). O personagem ainda foi retomado com a aventura juvenil Os porralokinhas (2007), ao lado da comediante Heloísa Périssé.
 
A comunicação sincera com as crianças reverberou no programa da TVE As aventuras do Tio Maneco, que, diante de incêndio, teve muitos episódios predidos. Migliaccio tornou pública a frustração: "Fiquei dois anos fazendo um personagem que criei, trabalhei com carinho, em cada característica dele, e foi apagado, como lixo. Inaceitável".
 
Incluído no elenco de Menino maluquinho 2 (1998) e dos longas de Ugo Giorgetti Boleiros, era uma vez o futebol (1998) e Boleiros 2 (2006), com tramas a partir dos encontros de ex-jogadores de futebol num bar paulistano, Flávio Migliaccio ainda jogou em terrenos populares com o longa Pra frente, Brasil (1982) e na direção de Os Trapalhões na terra dos monstros (1989), além de ter sido redator do programa Estados Anysios de Chico City (1990). Entre os últimos filmes estiveram Jovens polacas (2019), Verônica (2009) e Mato sem cachorro (2013).

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