Correio Braziliense
postado em 07/05/2020 04:08
Já são 30 anos sem a voz e o talento da carioca Elizeth Cardoso, que, se estivesse viva, completaria em 16 de julho o centenário. A artista, que também era conhecida como Divina, teve uma trajetória muito importante na música brasileira, seja por ter transitado por diferentes e novos ritmos, seja por ter ajudado na abertura de portas para novos artistas e compositores, inclusive, mulheres, num período em que elas não tinham espaço nesse cenário.
“Para mim, Elizeth, como bem fala Chico Buarque, é a mãe de todas as cantoras. Ela teve uma importância muito grande na vida das cantoras contemporâneas. Ela influenciou muita gente e foi muito importante, inclusive, porque apoiava novos compositores, ajudava os músicos. E estava sempre cantando o que havia de melhor da música brasileira de qualidade”, avalia Rosa Passos, cantora baiana radicada em Brasília que, em 2011, gravou um disco muito bem recebido pela crítica em homenagem à Elizeth Cardoso.
“Acho que não tem como falar sobre cantoras no Brasil e não falar da Elizeth. Ela é uma grande referência. Foi a maior cantora de rádio do país e foi ultrapassando gerações. Ela passou por várias fases da música brasileira e conheceu pessoas incríveis”, completa Anahi, artista de Cuiabá que vive há mais de 10 anos na capital federal e costuma incluir o repertório da carioca nas apresentações na cidade.
Trajetória
A música sempre foi algo natural para Elizeth. Nascida em uma família de artistas, ainda na infância se encantou pela arte e lutou contra todas as barreiras para seguir no ofício que sonhou. “Desde que eu nasci, no Rio de Janeiro, em 1920, minha vida sempre foi cercada de música. Meu pai era seresteiro e minha mãe adorava cantar. Mas a vida não era só festa. Era dureza também. Falta de dinheiro. Comecei a trabalhar com 10 anos. Fiz de tudo um pouco, vendedora de cigarros, operária de fábrica de sabão, costureira de uma peleteria, cabeleireira”, afirmou em uma entrevista recuperada no projeto Heróis de Todo o Mundo, com narração de Zezé Motta.
O trabalho profissional na música começou em 1936, com ajuda de Jacob do Bandolim que a apresentou para os responsáveis pela Rádio Guanabara. Na estreia, apresentou os sambas Do amor ao ódio, de Luís Bittencourt, e Duas lágrimas, de Benedito Lacerda. No início da carreira seguiu pelo estilo musical muito por conta da formação musical: cresceu em meio aos blocos carnavalescos e as rodas na casa de Tia Ciata.
Com o tempo foi incorporando outros ritmos. Fez parte da Era de Ouro da Rádio e participou do início da bossa nova. O disco Canção do amor lançado por Elizeth em 1958 com composições de Vinícius de Moraes e Tom Jobim com acompanhamento de João Gilberto no violão é considerado o marco inaugural da bossa nova, mesmo que tenha bebido da fonte do samba-canção, gênero em que a carioca se tornou uma das pioneiras e representantes.
Ao longo da carreira, conviveu e firmou amizade com grandes nomes da música, trabalhando com a nata do cancioneiro brasileiro, que incluía nomes como Noel Rosa, Grande Otelo, Clementina de Jesus, Pixinguinha, Ary Barroso, Candeia, Cartola, Nelson Cavaquinho, Baden Powel e Nara Leão. Ary Barroso fez diversas músicas para Elizeth, incluindo É luxo só, escrita a pedido da própria cantora. “Ela não tinha uma música para cima para encerrar o show que estava fazendo num teatro. Ligou para ele e pediu. Assim como Ary Barroso, vários outros fizeram composições para ela, como Cartola, que fez Acontece”, lembra Rosa Passos.
Homenagens
Rosa Passos lamenta que Elizeth tenha sido esquecida com o passar dos anos. “A importância dela é muito grande. Ela passeou pelo cancioneiro brasileiro todinho durante o período de vida dela, sempre cantando, lançando grandes compositores. Só que o nosso país musicalmente não tem memória. Grandes como ela, o tempo vai passando e, se não tem alguém com a audácia, o carinho e o respeito de querer homenagear, eles ficam esquecidos”, comenta.
Em 2011, Rosa Passos gravou Elizeth exatamente com essa intenção: colocar luz sob a artista. Mesmo que não tivesse a ideia inicial de lançar o material que gravou, acabou sendo convencida pelos amigos músicos que levaram o projeto para a gravadora Biscoito Fino. “Sempre fui muito fã dela pela elegância, pelo repertório e pela dicção e respiração perfeitas. Ela era fantástica”, lembra. Para gravar o conteúdo, Rosa ficou debruçada numa pesquisa sobre a história de Elizeth e das músicas, chegando ao repertório de 10 faixas gravadas em É luxo só. “Até hoje as pessoas falam desse disco. Fiquei muito feliz com o resultado. Fiz com muito amor e respeito. Fiz shows no Brasil, na América Latina e na Europa desse disco. Acho que Elizeth ficou contente. Ela é nossa Divina até hoje”, completa.
Anahi é outra cantora que sempre inclui Elizeth no repertório. Tanto por ser admiradora da artista, quanto para celebrar o passado. Para ela, a gravação preferida é Refém da solidão. “Acho a interpretação dela nessa música única. Sempre que canto vejo a imagem dela. Sou apaixonada por música brasileira e gosto da temática da mulher. Elizeth foi pioneira em diversos sentidos e é uma referência, com certeza”, comenta a intérprete.
O ano de 2020 começou com homenagens à artista pelo Brasil. Em fevereiro, o neto, Paulo Cesar Valdez, lançou uma cerveja com o título Divina Elizeth pela cervejaria Água de Bamba. Em março, alguns shows marcaram a celebração dos 100 anos. Dois deles comandados pela afilhada musical, Francineth Germano, que desembarcou em março em Brasília para homenagear a madrinha no projeto Já Chegou Quem Faltava, e depois a celebrou em São Paulo na Casa Francisca.
“Na época em que comecei, só quem tivesse talento e um padrinho conseguia fazer sucesso. No meu caso, foi uma madrinha, a Elizeth Cardoso. Ela me viu cantando em uma boate e se encantou, me levou até os diretores da Rádio Nacional”, lembra Francineth. No show em que celebra a amiga, Francineth costuma cantar sucessos como Barracão e Dona Xepa.
Também em março, Leci Brandão, Alaíde Costa, Zezé Motta, Claudette Soares, Eliana Pittman e Ayrton Montarroyos se reuniram no palco do Sesc Pinheiros, em São Paulo, sob direção de Paulo Serau e Thiago Marques, para revisitar o legado de Elizeth. Com a pandemia do novo coronavírus, novas homenagens ficaram impedidas. Mas a música de Elizeth permanece viva.
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