Diversão e Arte

Sérgio Sant'Anna era um dos mais renomados da literatura brasileira

O escritor morreu após uma semana de luta contra a covid-19

Correio Braziliense
postado em 11/05/2020 04:43
O escritor morreu após uma semana de luta contra a covid-19
Como se fosse o capítulo final de um de seus livros, Sérgio Sant’Anna escreveu a última página ontem. Esse inquieto, quase que um contraventor literário, foi mais uma vítima do novo coronavírus. Nesse domingo (10/05, domingo), após uma semana internado no Hospital Quinta D’Or, na zona norte do Rio, a covid-19 exauriu as forças daquele que foi, talvez, o pós-modernista brasileiro mais importante da nossa literatura, responsável por influenciar a visão de mais de uma geração de escritores.

Capaz de envolver o leitor com linhas acerca do ambiente urbano, muitas vezes com uma linguagem mais sensual, Sant’Anna conseguia unir sabedoria a um profundo conhecimento linguístico, ao mesmo tempo em que nutria um ceticismo sobre qualquer papel idealizado da literatura na nossa sociedade.
 

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O escritor trabalhou até o fim da vida. Nos textos mais recentes, abusou da ficção, com ambientação sensual para reflexões profundas que encontra poucos paralelos na literatura brasileira contemporânea. Porém, usando sempre a escrita como elemento estético-político, tratada com elegância apesar da ativa participação do escritor nas redes sociais, as quais caracterizam-se por linguagens mais cotidianas.

De Monteiro Lobato a Franz Kafka

Sérgio Andrade Sant’Anna e Silva nasceu no Rio de Janeiro, em 1941, e foi na biblioteca da casa dos pais que leu seus principais influenciadores: Monteiro Lobato, Franz Kafka e Machado de Assis. A trajetória começou em 1967. O então estudante de direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) inscreveu um de seus contos em um concurso literário da instituição. Após conquistar a segunda colocação e receber elogios da comissão julgadora, ele passou a publicar textos na revista Estória e também no Suplemento Literário de Minas Gerais.

O primeiro livro veio dois anos depois, com os contos de O Sobrevivente. A obra foi concebida no contexto da ditadura militar. Aliás, uma referência que os livros subsequentes nunca perderam. Depois desse, vieram outros, como O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro (1983), O monstro (1994), Voo da madrugada (2003), O livro de Praga (2011) e Anjo noturno (2017), último livro publicado. Mas o xodó do escritor foi A tragédia brasileira (1987). Durante uma entrevista no ano passado, Sant’Anna justificou a escolha. “Eu contei uma história muito cheia de acidentes de percurso, há várias linguagens, mas, ao mesmo tempo, é uma história que me seduz muito”, disse, à época.

Em relação à ambientação de suas obras, o carioca torcedor do Fluminense geralmente usava o Rio de Janeiro e o time do coração como pano de fundo para alguma história. No entanto, após 12 anos em Minas Gerais, Belo Horizonte passou a ser um cenário mais recorrente. “O Rio é mesmo o meu cenário, pois nasci e vivi aqui”, disse, uma vez, em entrevista. “Mas também morei em Belo Horizonte por 12 anos, estada que, pela convivência com muitos artistas, foi fundamental na minha formação literária”, complementou.

No mundo e nas redes sociais

Suas obras foram traduzidas para o alemão, o italiano, o francês, o espanhol e o tcheco, e ele venceu, entre uma lista enorme de outros prêmios, quatro vezes o Jabuti (que ele dizia “que todo mundo já ganhou”), três vezes o APCA e o prêmio da Biblioteca Nacional. Diversos de seus trabalhos foram adaptados para o cinema e para o teatro.

Em 2017, lançando aquele que foi seu último livro publicado em vida (Anjo noturno), Sant’Anna refletia sobre a própria vida em narrativas com fortes tintas autobiográficas, incluindo ali uma reconstituição impressionante do golpe militar de 1964. Na época, ele era sindicalista e trabalhava na Petrobras, de onde foi prontamente demitido pela ditadura. “Estou com 75 anos e andei sentindo um grande impulso de mergulhar no meu passado, de certa forma tornando este passado uma nova realidade”, disse, na ocasião, enquanto previa um futuro que mesmo os analistas políticos mais sérios ignoravam.

De opinião política forte, em 2018, como um dos principais convidados da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), lamentou o fato de as pessoas estarem na rua pedindo a volta da ditadura militar. Mais recentemente, Sérgio Sant’Anna publicava diariamente na sua página no Facebook opiniões incisivas sobre o estado político do Brasil, lamentava a perda de amigos e colegas, como Rubem Fonseca, mas também pedia aos amigos contatos nos jornais, que usou para publicar dois textos inéditos em abril e maio. Costumava se referir ao presidente Jair Bolsonaro como “a Besta”, e sempre ressaltava que era necessário manter o comando do país na mão dos civis.

No cinema

A literatura de Sérgio Sant’Anna desdobrou-se em filmes. Com as adaptações de cineastas como Bruno Barreto, Beto Brant e David França Mendes, que assinaram, respectivamente, os longas Bossa Nova (baseado em A senhorita Simpson), Crime delicado e Um romance de geração. No primeiro, bastante longe da unanimidade da crítica, uma professora de inglês, viúva, tem o coração disputado por alunos: um advogado e um jogador de futebol. O elenco é de peso, com nomes como Antonio Fagundes, Amy Irving e Alexandre Borges.

Em Crime delicado, estrelado em 2005 por Marco Ricca, Lilian Taublib e Felipe Ehrenberg, um jogo de inspiração e ciúmes, une (e separa) um crítico teatral, uma mulher liberta de amarras conservadoras e que é musa de um pintor. Já Um romance de geração (2008) vem baseado na carreira estagnada de um escritor empenhado em se fazer interessante, aos olhos de uma jornalista que o entrevista. Pesa aí o anteparo metalinguístico e a capacidade de fabulação que marcaram muitos textos de Sérgio Sant’Anna.

Ainda da mente de Sant’Anna brotou, por adaptação de Cláudia Jouvin, O gorila, produzido por meio da empresa de Rodrigo Teixeira, que levou às telas o premiado A vida invisível, entre outros. Em O gorila, estrelado por Otávio Müller, Mariana Ximenes e Alessandra Negrini, o diretor brasiliense José Eduardo Belmonte desfiou a verve mordaz de Sant’Anna.

*Colaborou Ricardo Daehn

OBRAS

» O sobrevivente - (contos, 1969)
» Notas de Manfredo Rangel, repórter - (contos, 1973)
» Confissões de Ralfo - (romance, 1975)
» Simulacros - (romance, 1977)
» Circo - (poesia, 1980)
» Um romance de geração - (peça de teatro, 1981)
» O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro - (contos, 1983) – Prêmio Jabuti
» Junk-Box - (poesia, 1984)
» A tragédia brasileira - (romance-teatro, 1984)
» Amazona - (novela, 1986) - Prêmio Jabuti
» A senhorita Simpson - (contos, 1989)
» Breve história do espírito - (contos, 1991)
» O monstro - (contos, 1994)
» Um crime delicado - (romance, 1997) – Prêmio Jabuti
» O voo da madrugada - (contos, 2003) – Prêmio Portugal Telecom
» O livro de Praga: narrativas de amor e arte - (contos, 2011) – Prêmio Clarice Lispector
» Páginas sem glória - (dois contos e uma novela, 2012)
» O homem-mulher - (contos, 2014) – Finalista do Prâmio Oceanos 2015
» O conto zero - (contos, 2016)
» Anjo noturno - (contos, 2017)

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