Diversão e Arte

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O cineasta Karim Aïnouz fala sobre novo filme em que, mais uma vez, coloca uma lente de aumento sobre os problemas de minorias, ou comunidades não-hegemônicas, como ele prefere chamar

Correio Braziliense
postado em 12/05/2020 04:07
O cineasta Karim Aïnouz fala sobre novo filme em que, mais uma vez, coloca uma lente de aumento sobre os problemas de minorias, ou comunidades não-hegemônicas, como ele prefere chamar

Depois de consagrado em festivais internacionais com filmes como Praia do Futuro e A vida invisível (vencedor de importante prêmio em Cannes), o cineasta Karim Aïnouz, que investiu em longas com tramas situadas no passado, a exemplo de Madame Satã, pretende olhar para frente, no próximo desafio — um longa que enfoque a atual crise mundial: “Quero fazer um filme sobre futuro, sobre um personagem em 2060 e que vive num mundo mais igualitário, num mundo bem melhor do que o capitalista de agora, e que volta a 2020. Ele observa o ano, a partir da perspectiva do futuro”, explica. Ainda sem título, o projeto é revelado ao Correio, por contato feito na Alemanha, onde ssKarim vive há 11 anos.

É do país germânico que, em tempos difíceis, o diretor celebra o sentimento de acolhimento e a liderança e capacidade da chanceler Angela Merkel. “Aqui, existe a disciplina que vem até de traços culturais. É engraçado: na Espanha e na Itália, todo mundo se abraça, muitos ficam perto, e se tem uma vida coletiva muito mais forte do que na Alemanha. O próprio DNA cultural daqui ajuda a não-infecção”, comenta ele. Foi lá, que até 2016 ele focou no enredo do recém-lançado filme, o documentário Aeroporto Central (liberado diretamente para streaming).

Inesperadamente, o compasso de espera vivido pelo iraquiano Qutaiba Nefea e pelo estudante sírio Ibrahim Al Hussein (entre muitos refugiados isolados num aeroporto) dialoga com nossa realidade, diante da ameaça da covid-19. Diante das sólidas edificações do gigante de Tempelhof, durante as filmagens, Karim Aïnouz não deixou de lembrar da passagem por Brasília, como estudante da UnB. Memórias que ecoam no espírito de utopia assimilado: “No cinema, não me interesso em falar da cansativa distopia. Temos que aproveitar o momento para falarmos de utopias. Distopia era aonde a gente estava, antes de a pandemia começar. Espero que a gente não incorra no mesmo erro”, observa.


Exitem coincidências entre seu novo filme e o momento pelo qual passamos, não?
Fico impressionado, quando penso no filme: foi feito em outro momento, mas coincide a questão de não sabermos para onde estamos indo. Esperamos um futuro sobre o qual não temos nenhum controle. Exatamente o que os personagens do meu filme estão vivendo. Tem uma ironia que está no próprio DNA do Aeroporto Central. Falamos de um abrigo de refugiados construído dentro de um aeroporto militar. Com relação à pandemia, parece que estava na genética do filme a ironia do destino. Quando a gente fez o filme era sobre uma questão superurgente.


No filme, a gente vê a estrutura do aeroporto bem imponente e que faz lembrar monumentais traços de Brasília. Você, como ex-aluno da UnB, pensava no paralelo entre as edificações?
Sempre vinha um pouco na cabeça aquela foto do Minhocão da Universidade de Brasília. A gente nunca esquece da convivência, no Minhocão, dos colegas da universidade. Aquilo foi muito integrante da minha vida, especialmente pela arquitetura. Olhando para a estrutura do aeroporto, dos hangares são muito parecidos. Mas, tentei evitar as associações já que foram propostas tão diferentes: o Minhocão é projeto que versa sobre liberdade e propõe o encontro. A diferença está no jardim dentro do Minhocão: o Aeroporto vai pelo contrário: se estabelece, alto e imponente.


Como conquistaram a confiança de pessoas naturalmente fragilizadas, e qual o cotidiano de produção?
A gente foi por temporadas, a cada mês, durante um ano. Cada vez, era por uns três dias. Não quisemos incomodar muito e não sermos muito intrusivos. A partir do terceiro mês, eles já estavam quase acostumados conosco. Então, buscávamos evitar problemas e atritos. A equipe era minúscula: éramos três pessoas: o operador da câmera, eu e alguém da produção local. Sempre acompanhados por alguém que administrava o local. Houve restrições, por uma questão de se proteger. É um lugar complicado. Era um lugar com linha tênue entre público e privado. Tivemos muito cuidado de não expôr quem não quisesse. Em momento algum, houve censura. Íamos pela linha contrária do que era uma equipe de televisão que, muitas vezes, vampirizava a situação. No começo, haviam uma resistência muito grande com a câmera, pela dinâmica anterior do cotidiano junto às equipes dos canais de tevê que havia circulado demais por lá. Aprendi um tanto da arte da escuta. Eduardo Coutinho, aliás, foi uma grande inspiração. Tinha uma coisa de apagamento, de uma troca: eu ali com a câmera, e eles (os protagonistas) foram escolhidos ao mesmo tempo em que me escolheram. Eles queriam contar as histórias deles.


Em filmes como este e outros (Madame Satã, A vida invisível e O céu de Suely), você dá voz a minorias... De onde vem isso?
Prefiro chamar de comunidades não-hegemônicas.Não vejo as mulheres e os sírios como minorias. Certamente são personagens colocados à margem, por razões não justas. Minorias, sim, num sentido de representatividade na grande mídia. O filme veio do incômodo. Queria contar histórias de personagens e não do coletivo. As reportagens falavam do afluxo dos refugiados: se falava ainda da Turquia chegando à Europa, com registro de multidões. No meio dos grandes grupos, busquei adentrar o humano. Como diz o título anterior (A vida invisível), me debrucei sobre a invisibilidade relegada na grande mídia.


Qual a motivação para se dedicar tanto a um filme?
Minha grande motivação foi a indignação pela forma como uma população estava sendo registrada. Busquei uma perspectiva minha. Ainda bem que vivo um momento em que posso pegar uma câmera e contar o meu lado. Você se conecta com os personagens através das tuas tripas. Tinha uma certa vontade de externar uma certa frustração de quando morei na França, como adolescente e migrante — isso alimentou minha indignação. As pessoas eram vistas como vírus nocivos à comunidade europeia. Quis sublinhar o quanto é importante sermos solidários frente a vítimas de guerra. Daí ter optado em focar o iraniano Qutaiba Nefea e o ex-estudante sírio Ibrahim Al Hussein.


Qual o borogodó do cearense, na construção de um filme como Aeroporto Central?
Acho que é um borogodó do árabe cearense. Acho que se eu fosse só um brasileiro, seria diferente. Tinha uma coisa que os personagens me disseram, ao fim da jornada: eles achavam que eu soubesse árabe e que estava mentindo, para poder escutar coisas que falavam entre si. Existia um espelhamento: eu também não sou alemão. Tenho histórico de imigração completamente diferente do deles. Pesou o fato de eu ter um nome árabe. Eu acho que existe sempre uma simpatia gigante — mas não sei até quando, pela maneira com a qual o país tem sido tocado — relacionada aos brasileiros; isso fora a questão da empatia. No Festival de Berlim de 2018, quando o filme foi lançado, fiquei me perguntando se os alemães não estariam com inveja de eu ter feito o filme (risos). Mas acho que não. A verdade é que houve curiosidade na nossa aproximação. Por identidade, seria muito diferente o painel, se eu fosse um sujeito louro, vindo da Bavária, querendo saber das coias deles. Favoreceu o contato uma horizontalidade nas nossas relações.


Como estão o cotidiano e a realidade na Alemanha?
Estou aqui há 11 anos, com idas e vindas para Fortaleza. Tenho a sensação de privilégio incomensurável de estar aqui na Alemanha. Vem o sentimento de estabilidade por termos lideranças no Legislativo e no Executivo que têm administrado a crise muito bem. Temos uma mulher, cientista, como primeira-ministra, e que tem pronunciamentos públicos afastados de repercutirem em histeria, frente à população. Não pesa pânico, ela causa equilíbrio. Ela é dona de uma transparência que tem feito muito bem. Ela é muito equilibrada e respeitada. Traz a combinação curiosa de ter sido criada dentro do comunismo, ser filha de pastor e química. Ela tem solidariedade, tem o conhecimento científico. É uma mulher que sabe o que é um país em que o coletivo é mais importante do que bens individuais. Aqui, todos podem fazer o que quiserem; contanto que ajam dentro da lei, com as restrições impostas pela atualidade. Existe uma certa calma, que ajuda todos. Pesa a lucidez: ela não está dourando a pílula. Ela diz que com algumas iniciativas de reabertura, ficará em cima, e a qualquer sinal de aumento nos casos de covid-19, voltará atrás. Ela busca um processo empírico: de tentativas, acertos e erros. Vem até otimismo, pelo fato de estar num dos países que menos tem contabilizado infectados e mortos.


Como vê a realidade brasileira de agora?
Gosto de passar mais tempo imaginando um futuro que seja melhor do que se falar de passado. Fala-se em “voltar ao normal”. Mas, o normal não era normal. O normal é aberrante: um mundo com a concentração de renda que se vê hoje! Isso tem que acabar. Temos que pensar nas possibilidades de um mundo mais coletivo, cheio de igualdade e mais respeitoso com a natureza. Temos que escutar a chance dada pela natureza. No aprendizado com tudo, tenho uma visão muito otimista. No fundo, admiro muito o ser humano. Junto com a capacidade de cometer grandes erros, ele tem a capacidade de refletir e melhorar as coisas.
 
 
 

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