Diversão e Arte

Escritor Milton Hatoum avalia como será a vida das pessoas após a pandemia

Confira a íntegra do depoimento do escritor

Correio Braziliense
postado em 16/05/2020 06:02
Milton Hatoum
No conto Amor, de Clarice Lispector, a personagem Ana leva uma
vida aparentemente normal. Mas tudo muda quando ela vê um cego num ponto de bonde. Esse olhar profundo no outro provoca uma crise moral e existencial na personagem. “O cego ficara atrás para sempre, mas o mal já estava feito”. Para Ana, a visão do cego “mergulhara o mundo em escura sofreguidão”, e ela “caíra numa bondade extremamente dolorosa”.

Como será a vida das pessoas após a pandemia, que certamente
deixará uma grande parte do mundo em escura sofreguidão? Será
que, à semelhança da personagem de Clarice, vamos “cair numa
bondade extremamente dolorosa”? Seremos mais solidários?
Não consigo prever nem sequer intuir o futuro. Como escritor de
ficção, estou mais preocupado com o passado e sua repercussão no presente. Mas arrisco dizer que o sofrimento da imensa maioria dos brasileiros e a morte de milhares de pessoas podem sensibilizar os que eram indiferentes à dor dos outros.

Também nesse sentido o conto de Clarice Lispector é notável. Se
muita gente pensar na dor dos mais desvalidos num mundo
mergulhado em escura sofreguidão, é provável que certas sociedades sejam mais humanizadas. Refiro-me a nações com democracia estável e instituições sólidas, cujos cidadãos – dos mais pobres aos mais ricos - são protegidos pelo Estado do bem-estar social. Nações em que as Forças Armadas apenas cumprem seu papel institucional e jamais se intrometem na vida política, muito menos para tutelar, com alianças cúmplices, governos autoritários, sem qualquer compromisso com a democracia.

Muitas pessoas vão refletir sobre nossa dupla miséria: social e
política. Mas a grande questão refere-se ao papel do Estado,
responsável por políticas públicas. Os biomas e suas populações
originárias serão protegidos e respeitados? A obscena, brutal
desigualdade social vai diminuir? Vão diminuir a violência e a
impostura política? Nossas elites – política, econômica, institucional - vão adquirir consciência de que é urgente investir seriamente no saneamento básico, na educação e saúde públicas de qualidade?

Manter o SUS é fundamental, mas é bom lembrar: antes da
pandemia, os brasileiros mais humildes eram mal atendidos, e
milhares morriam (e ainda morrem) por falta de atendimento. É
verdade que faltam recursos e capacitação ao SUS, mas é também verdade que alguns estados - como o Amazonas e o Rio, entre outros – são mal administrados e saqueados há décadas.

Talvez essas perguntas e observações sejam inúteis enquanto durar o atual governo, que alimenta perversamente o atual estado
catastrófico. Não encontro qualquer razão para ser otimista, se é que fui algum dia. E a esperança, para não ser uma mera palavrinha de consolo, só fará sentido se houver uma forte mobilização de todos os brasileiros que anseiam por uma verdadeira democracia para este país.

Espero que os jovens usem toda sua energia – física, moral e
intelectual – para, nos limites da democracia e do Estado de direito, fazer mudanças positivas e duradouras. Só assim poderemos emergir desse “mundo em escura sofreguidão”.

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