Indefinível, mas definitiva. Por esses moldes está cercada a figura da poeta Ana Cristina Cesar, no documentário Bruta aventura em versos, da diretora Letícia Simões (com obra na grade do canal Curta!, até segunda, dia 18 de maio). Ausente, desde 1983 (quando efetivou suicídio), a poeta, influente no âmbito da geração do mimeógrafo, num momento da carreira alertou: "Sou uma mulher do século XIX disfarçada no século XX", mas estradulava conceitos e imposições sociais, pelo que explica na tela, a ex-professora Heloísa Buarque de Hollanda, uma das personalidades que aparecem no filme.
A mestra Helô (como era chamada por Ana Cristina), que propôs, em 1976, a antologia 26 poetas hoje (que contemplou Cesar, claro), aparece no documentário para reparar que até anotações ocasionais da aluna encerravam poética. Soterrada, entre poetas arvorados a se projetarem, Helô salienta a cena diferenciada com a vistosa Ana Cristina: quando apresentada a ela, pel professora Clara Alvim, viu a moça sair correndo, em disparada.
Imprevisível, integrada aos marginais (com representante dos porte de Ricardo Chacal, que, no filme, referenda objetivos de "transgressão à tradição" dos escritores setentistas), Ana Cristina destoava, dada a responsabilidade de zelar em ser literária. Ressabiada em assumir autoria absoluta (a cada texto), Ana Cristina, nas imagens de arquivo, aparece sublinhando uns roubos e pescadas de expressões de texto de quem admirava, legião que trazia de Carlos Drummond de Andrade a Cecília Meireles, passando por James Joyce e Billie Holiday.
Encenação (na vida real), figurinos e personagens (que ela construía) embaralhavam a identidade da autora, que, para quem a conheceu, era definida pela multiplicidade. O autor Augusto Guimaraens dá seu depoimento de como ela escapava de ser uma só, enquanto o filme ainda expõe falsas pistas e jogos intrincados de Ana Cristina Cesar na autoria de obras como Correspondência completa (1979). O exame do primeiro livro editado (oficialmente, em 1982) A teus pés potencializa a precisão do leitor Paulo José (ator e diretor, vale lembrar) em desbaratar que "a verdade (na autora) estava na profundidade de sentimento".
Reconhecida por livros como o da coleção Novas seletas (com textos, aos 16 anos), Ana Cristina, no documentário, recebe declarações empáticas de pessoas como a bailarina Marcia Rubim, as jovens escritoras Alice Sant´Anna e Laura Liuzzi, além de Paulo José que cita um dos achados escritos de Ana referente à "experiência mortal de virar do avesso" (ou seja, de se ter a capacidade de entendimento das ideias, das perspectivas distintas às de si).
Descrita como a pérola que dá brilho e luz à ostra, a autora ainda passa pelo crivo do curador da obra dela, Armando Freitas Filho. Ele ainda atenta para a grande qualidade da escritora, dona de tom confidencial capaz de angariar a atenção gerada pela estrita objetividade junto a seus interlocutores (leitores, no caso).
Quatro perguntas// Letícia Simões, diretora
Em que ponto a Ana Cristina Cesar é mais surpreendente: na vida ou na obra? Qual a singularidade da escrita dela?
Ana Cristina me fascinou desde a primeira vez que a li. Sua escrita é enigmática e, ao mesmo tempo, muito tocante, pois parece falar diretamente conosco. A questão do interlocutor era um dos principais pontos da sua pesquisa literária, e isso se desvelava entre seus textos. Também é muito instigante a sua escolha por trabalhar com formas literárias tidas como desimportantes: a carta, o bilhete, o diário, o cartão-postal. Ana Cristina se virou justamente pro recôndito da intimidade para, ali, fazer literatura -- e isso é um terreno muito fértil para uma cineasta.
Em que aspecto a passagem da poeta por Brasília modificou algo nela?
As cidades onde Ana viveu assumem um papel marcante em sua poesia; ela dedica escritos e desenhos a elas. Brasília representou um ponto importante em sua formação -- e atravessou toda a sua vida através das figuras de Clara e Francisco Alvim. No filme, a cidade vem através desse manancial de afeto que ela dedica aos dois.
Houve um arquivo de imagens, acervo de baú especial, que veio a contribuir definitivamente no resultado do filme?
Saiba Mais
Na época em que fiz o filme, havia muito material inédito de Ana Cristina -- tanto escrito quanto em imagem, como as suas fotografias e desenhos. Todo esse material foi doado pela família ao Instituto Moreira Salles, e isso deu vazão a uma série de publicações, por exemplo. Mas os personagens do filme também foram muito generosos comigo: Armando Freitas Filho e Heloísa Buarque de Hollanda me cederam, além do precioso tempo, textos, imagens e publicações privadas.
Como o suicídio impactou as pessoas que melhor conheceram a escritora?
No filme, Heloísa Buarque resume bem a questão do suicídio é vista: é uma poeta que termina fascinando pelo mistério da sua escrita e que se matou -- e o tema do suicídio, na história da literatura, cria uma fascínio. Creio que o aspecto mais belo da obra de Ana é, tantas décadas depois, atrair tantos diversos leitores e ter uma capacidade de caleidoscópio, trazendo novos e outros significados. A escrita de Ana parece ter sido feita aqui, agora -- amanhã e ontem.
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