Correio Braziliense
postado em 25/06/2020 04:08
O maestro e pianista João Carlos Martins é um exemplo de reinvenção. Ao longo dos 80 anos, que completa hoje, teve que recomeçar algumas vezes por causa dos problemas de saúde que envolvem lesões no nervo ulnar, esforço repetitivo, danos no cérebro, e a distonia (doença degenerativa que afeta os movimentos do corpo). No piano, aprendeu a tocar só com a mão esquerda depois de perder os movimentos da mão direita. Um ano depois, sem os movimentos da outra mão, passou a dedilhar no instrumento apenas com os polegares, foi quando se iniciou na carreira de maestro, com 64 anos.
Há exatos 22 anos, João Carlos Martins tocava pela última vez piano com os 10 dedos das mãos numa apresentação em Londres ao lado da Royal Filarmônica Real (RPO), um dia antes de fazer a 20ª operação que retiraria os nervos da mão direita. Desde o Natal do ano passado, ele pode tocar novamente com a ajuda de todos os dedos, graças às luvas extensoras, feitas pelo designer de produtos Ubiratan Bizarro, as quais ganhou no Natal do ano passado.
As “luvas biônicas”, como ele gosta de chamar, trazem os dedos de João de volta após apertarem cada tecla do piano, em uma ideia baseada nos pneus de carros de Fórmula 1. “Moral da história: com a luva, eu não vou poder ser o pianista de antigamente, claro. Eu chegava a fazer 21 notas por segundo numa escala. Mas vou poder tocar coisas mais lentas e com emoção pelo menos usando as duas mãos”, comenta em entrevista ao Correio.
Os três meses e meio de recolhimento por conta da pandemia têm sido dedicados ao piano. Diariamente, João Carlos Martins se senta ao instrumento e estuda para recuperar o tempo que precisou parar de tocar. A dedicação é tanta que ele diz nem perceber passar as horas. É vestindo pijamas — ele usa três ao longo do dia — que o novamente pianista se dedica ao estudo do instrumento. “Entrei em casa em 13 de março e não sai mais. Durante a pandemia eu pude estudar piano e meus dias ficaram mais curtos. Estudo como uma criança de 8 anos de idade, porque o cérebro ainda está se acostumando”, explica.
Estreia
A quarentena de João Carlos Martins será quebrada hoje, quando ele completa 80 anos e faz a primeira live. A partir das 20h, o maestro se apresenta ao lado da Bachiana Filarmônica SESI-SP e com os solistas Davi Campolongo (piano), Anna Beatriz Gomes (soprano) e Jean William (tenor) em um estúdio em São Paulo, em um show que relembra a trajetória de superação na vida e na música clássica. Diretamente de um estúdio, será exibido num telão uma retrospectiva da vida do músico mesclado com o concerto, que terá ainda homenagens de Ana Maria Braga, Serginho Groisman, Chitãozinho & Xororó, Walter Casagrande Jr., Alexandre Nero (que interpretou Martins na cinebiografia João, o Maestro), Tom Cavalcanti, Marluce Dias da Silva e o médico Raul Cutait.
Durante a live, o maestro aproveitará para apresentar os projetos para os próximos 20 anos. Um deles, João Carlos Martins adiantou ao Correio que se trata da internacionalização do projeto social Orquestrando Brasil, iniciado em São Paulo e que conta com 500 orquestras pelo país com apoio do SESI-SP e da Fundação do Banco do Brasil. “Esse projeto tem um ideal muito grande e quero atrair a atenção da comunidade internacional ligadas às artes e à cultura. Quem sabe no ano que vem a gente não chega a Moçambique, Angola, países com a língua portuguesa. É um projeto que realmente tem ideais”, completa.
Em julho, João Carlos Martins se apresenta mais uma vez com a orquestra, agora, de forma completa e ao vivo em um ginásio em São Paulo, mas, também, com transmissão em live e seguindo as regras da Organização Mundial da Saúde (OMS). Ele diz não gostar do formato digital em que são feitas gravações de orquestras. Por isso, o modo ao vivo. “Mantendo aquilo que sempre falo: a trajetória de esperança na música e na cultura. Vejo que nós temos que cada um no seu campo das artes fazer o seu papel”, afirma.
» Quatro perguntas / João Carlos Martins
A gente vive um momento de muita solidariedade e o senhor sempre investiu em projetos sociais. Como tem sido para as suas iniciativas nesse momento da pandemia?
Isso é muito importante. Primeiramente, os meus projetos de responsabilidade social com crianças e jovens continuam a todo vapor. Esse projeto é baseado única e exclusivamente em ideais. Já percorri as fronteiras do Brasil mostrando a força da música clássica. (Heitor) Villa-Lobos queria fechar o Brasil em forma de coração. Quem sou eu, perto dele. Mas ele não tinha tevê, nem internet, e esse projeto, pela exposição que eu tive, tem. Estou levando a todo o Brasil mais de 500 orquestras e, certamente, o sonho dele de fechar o Brasil em forma de música, esse velho maestro conseguirá realizar.
Como o senhor tem avaliado esse momento pandemia e o que espera do mundo pós-pandemia?
O que vejo é o seguinte: no mundo de pandemia, nós estamos entendendo a importância de cuidar da saúde, do físico e do conhecimento. Porque as pessoas estão tendo oportunidade de refletir, ler, estudar, ao mesmo tempo, de enfrentar a pandemia. Mas a pandemia está ensinando a todos aqueles ligados às artes e à cultura como se cuidar da alma. Porque a cultura é a maior expressão de uma nação. Através da música podemos ajudar a cuidar das almas das pessoas. Acredito que no mundo pós-pandemia haverá muitas reflexões para ajudar a diminuir a desigualdade do mundo.
O senhor acha que podemos tirar algo de positivo desse momento atual?
O acho que vamos tirar de positivo é antes de tudo a palavra responsabilidade aliada a solidariedade. Porque a pandemia mostra para o mundo inteiro a responsabilidade que cada país tem que ter. A solidariedade para saber como ajudar pessoas, porque tenho certeza que no Brasil e o mundo são mais casos (de covid-19) do que temos conhecimento. Responsabilidade e solidariedade passam a fazer parte do vocabulário da maioria pensante do planeta. Isso acaba sendo transmitido para todos os segmentos da sociedade. Acho que terá menos desigualdade e, ao mesmo tempo, mais esperança. Porque cada um terá que redobrar seus esforços para alcançar resultados.
Em meio à pandemia, o Brasil ainda vive uma crise política que envolve a cultura, que teve troca de secretários. Como o senhor vê tudo isso?
Na cultura, que é o que eu entendo, eu diria que se tivesse havido uma medida provisória quatro dias após o fechamento dos espaços culturais no Brasil transformando a Lei Rouanet (política de incentivo a ações culturais) de presencial para virtual, pessoas que carregam escadas, limpam palcos, receberiam os salários e continuariam a ter dignidade em suas vidas. É uma medida que lamento não ter sido usada, porque está aí. Essa MP teria realmente dado um caminho para as artes no Brasil no ano da pandemia. E não deixando essas pessoas simplesmente à margem. Porque a cultura faz parte do progresso da nossa nação e da alma da nossa nação.
João Carlos Martins — 80 anos
Hoje, a partir das 20h, live nos canais oficiais do Facebook e YouTube. Com o maestro ao lado da Bachiana Filarmônica SESI-SP e dos solistas Davi Campolongo (piano), Anna Beatriz Gomes (soprano) e Jean William (tenor).
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