Diversão e Arte

Conheça o paulista destacado em Cannes com filme sobre racismo

Cineasta estreante e único brasileiro selecionado para o Festival de Cannes, João Paulo mira o preconceito racial, no inédito Casa de antiguidades

Correio Braziliense
postado em 09/07/2020 09:00
O diretor João Paulo Miranda Maria:



Um dos cineastas escolhidos na seleção do Festival de Cannes 2020, João Paulo Miranda Maria formatou — aos 38 anos, o primeiro longa-metragem da carreira Casa de antiguidades, destacado pelo maior festival de cinema do mundo — com temática muito atual: o racismo. Um dos rostos fundadores do Cinema Novo, Antonio Pitanga, sempre lembrado por filmes de Glauber Rocha e Cacá Diegues, faz a diferença na telona, como protagonista.

Cristóvão, o personagem central do longa, é um brasileiro interiorano que faz jus ao modelo de cinema caipira pretendido pelo diretor João Paulo. “Cristóvão carrega as marcas do tempo e é rústico. Sai do interior de Goiás e vai rumo a um Sul ultraconservador”, explica. O filme começou a ser escrito em 2015, por incrível que pareça. Com atmosfera visual a la anos 1970, não traz um enredo de época e coloca o personagem em cenário de crise pessoal ligada ao trabalho. O personagem migra para um Sul supra-higienista, em que, numa comunidade de origem austríaca, deve se impôr, ao mesmo tempo em que reconecta com cultos à ancestralidade..
 
 

Sem ter tido o longa exibido em Cannes (vale lembrar que o evento foi suspenso por causa da pandemia), João Paulo ressalta a lástima da perda do encontro entre Spike Lee (o engajado cineasta, na presidência do Festival de Cannes em 2020) com o ator Antonio Pitanga: “Seria incrível. Traria um outro olhar, uma atenção diferente ao filme”.

Trajetória

Na espera ainda indefinida da estreia de Casa de antiguidades, e do encontro com o público, João Paulo vai aprendendo e aprofundando a percepção de quão contemporâneo seja o conteúdo de seu filme de estreia. “Manifestações que observo, de reforço no inaceitável do que seja o racismo, não têm ocorrido de hoje. O racismo é algo muito antigo. Há um peso e uma dívida que, em alguma hora, tem que ser paga. Toda a sociedade está tendo que pagar, e vem o movimento negro cobrando isso: um espaço, uma participação e uma justiça”, enumera. “Não há como se ficar indiferente ou insensível”, conclui.
 
Entrevista // João Paulo Miranda Maria

Como está a vida na França? Por que saiu do Brasil?

Juntei um tanto de dinheiro, e arrisquei para ver no que daria vir para cá. No Brasil, ainda tem muito desta coisa de 'santo de casa não faz milagre (risos)'. Vi que o reconhecimento veio muito mais de fora. Decidi explorar mais as oportunidades. Moro na França há pouco mais de um ano. Vim até pela pós-produção do longa que conta com coprodução daqui e havia exigência de que a montagem se desse aqui. Moro com a esposa e dois filhos pequenos, um de 9 e outro de 6 anos, sendo que o menor é autista. Ele é especial, e aqui a gente encontrou uma estrutura que nunca imaginava. Algo que infelizmente não se tinha no Brasil. Moramos em Montreuil, na região da grande Paris, na mesma avenida em que ficava a casa de Georges Méliès (pioneiro do cinema), no fundo dos estúdios dele. Pura coincidência!

Em que afetou o impacto do coronavírus na sua rotina?

Nunca imaginamos algo com este impacto da pandemia. Na França, o lockdown realmente funcionou — as pessoas respeitaram bastante. Mesmo no apartamento minúsculo em que moramos, nos organizamos. Com a mudança de rotina, veio a reflexão. Aliás, a gente suspeita até que tenha sido contaminado, de uma forma leve, com o vírus. Senti falta de olfato, cansaço, dor no peito — mas não comprometeu a respiração. Mesmo assim, íamos dormir com desespero na casa. Veio o medo do que vai acontecer com este mundo.

Que mudanças vislumbra para o pós-pandemia?
 
A gente vai ter que mudar. Falando vulgarmente: a água bateu na bunda. A coisa escancarou: a gente está enfrentando problemas ecológicos junto vem a sociedade, a política, o consumo — temos que mudar muito os velhos hábitos. Cada um, nas suas capacidades, tem que pensar no dia de amanhã. As grandes revoluções são sempre antecedidas por uma crise. O fim do momento crítico vai gerar uma comoção e movimentos de várias áreas. Movimentos culturais e artísticos, também. Com o sangue novo, no meu primeiro filme, espero contribuir na revolução.

Como está a imagem do Brasil pela França?

Quanto à imagem, a do Bolsonaro está horrível. É algo quase nojento aqui. O público fica surpreso, indignado, conforme as notícias vem do Brasil. É claro que os franceses adoram os brasileiros e isso continua, ainda. Mas nós, brasileiros, ficamos é sem graça — ficamos envergonhados diante de tudo que é visto.

Quais são as tuas origens, e o que te aproximou da linguagem artística?

Vim do interior de São Paulo, de Rio Claro, berço do integralismo — de onde veio Plínio Salgado. A cidade é muito conservadora: meus pais trabalhavam em restaurante, e eu ajudava, num conjunto de vida classe média. Venho de família branca e católica, cheguei a estudar num colégio tradicional alemão muito rígido. Mas, desde pequeno, eu era meio esquisito (risos): gostava muito de quadrinhos, por exemplo, e era bem estranho. As pessoas não reagiam muito bem, quando pediam para eu desenhar um herói, e eu produzia um Batman gordo, enorme, e que segurava um menino franzino pela perna (risos). 

De onde veio teu espírito crítico para o filme? 

Por mais que ame minha família, me impactaram muito coisas vivenciadas, e que ficaram no estômago e na garganta, e que a gente não pode aguentar: lembro da primeira namorada que eu tive — ela era negra. Quando apresentei para a minha família, e, passado um tempo, a beijei, naturalmente; minha avó levantou para limpar minha boca! Aquilo criou uma situação! Foi para a lista do que a gente guarda. É duro falar mal de familiares, mas...

Como foi a escolha do Antonio Pitanga para teu filme, e como brota a questão do racismo na trama?

Minha inspiração sempre foi o Antonio Pitanga. O pessoal da produção não esperava minha escolha para tê-lo como protagonista. Imaginavam um personagem rústico, caipirão, mas não negro. E não imaginavam alguém tão velho. Veio o receio da idade, aliás. Conheci Pitanga, e deixei claro: preciso do sangue no olho, preciso de uma força, e sei que você tem essa vibração. Você é o cara do cinema novo! Busquei a sinergia dele. Na trama, há um choque cultural — ele encontra uma casa abandonada. Remexendo em objetos, brota uma força antiga, dada ao combate e ao enfrentamento: é um filme também espiritual, aliás. Desde o meu curta A moça que dançou com o diabo (2016), estou quase querendo chamar o capeta, o demônio. Tenho chamado forças para conversas. Nesse, vem o caboclo boiadeiro: ele vem para dar uma limpada geral.
 
Antonio Pitanga: símbolo do cinema novo 

Como percebe as manifestações contra o racismo? 

As manifestações não têm ocorrido de hoje. O racismo é algo muito antigo. Há um peso e uma dívida que, em alguma hora, tem que ser paga. Toda a sociedade está tendo que pagar, e vem o movimento negro cobrando isso: um espaço, uma participação e uma justiça. E uma indenização das barbaridades como a do assassinato de George Floyd. Tem o fato recente ocorrido em Recife... Não há como se ficar indiferente ou insensível. Não idealizei meu filme só no tratamento do racismo, mas de muitos preconceitos como os decorrentes do machismo. Coloquei personagens femininas muito mais revolucionárias até do que o protagonista. 

O que acha de não poder ter passado pelo circuito de celebração de Cannes?

Quanto a Cannes, não vejo a hora como um momento de tapete vermelho. Não é hora de festa e celebração: é um momento de luta, em vários sentidos. Parece que foi um ano como o de 1968, de protestos. O cinema deve se descolar do tapete vermelho, e chegar a outros campos, os de luta. No cinema do futuro, temos que ter a responsabilidade de projetar o amanhã, para o depois da crise. A gente está vendo a situação da Cinemateca, do Festival de Brasília, a mobilização cultural e também um momento espacial do movimento negro.Vem tudo em peso e dialogando. Acho que o Antonio Pitanga representa um porta-voz disso tudo. O filme Casa de antiguidades se encaixa e vai dar uma força para levantar uma bandeira contra tudo o que for antiquado! Sai o ranço.


Como foi sua passagem pelo Festival de Brasília, há cinco anos?

Fui para Brasília com meu primeiro curta-metragem, o Command action (que esteve na Semana da Crítica do Festival de Cannes). Foi bacana ter passado por Brasília. É um evento importantíssimo, em especial, para um cinema independente. Traz um cinema que vem pra militar, com um olhar social. O festival cria polêmicas, traz provocações e cria embate. Discussões sempre são geradas. Vejo que sempre tenho que fazer algo pessoal, meu (em cinema), se não, não vale a pena. Para que repetir tendência e gostos? Quero assumir uma diferença, para encontrar a mim mesmo. Num filme, a gente precisa se expôr. Apostar num cinema diferente é muito arriscado. O público dificilmente fica indiferente.
 

Saiba Mais

 

Seu cinema bebe de quê e de quem?

Ele é alinhado a diretores que ousam muito esteticamente. Apichatpong Weerasethakul, Lav Diaz, Béla Tarr, Carlos Regadas, Jean-Marie Straub e Pedro Costa: gosto é desse tipo de olhar, o do cinema de autor. O retorno dado por Cannes para mim é incrível. Estamos com um filme diferente: há uma curva na trama, e ele assume um radicalismo. Para se atingir algo grande e delicado, às vezes, a gente beira um certo ridículo, vai pelo campo absurdo... Do Brasil, obtive influências de Glauber Rocha, Mário Peixoto e Eduardo Coutinho. Coutinho mergulha e flagra a alma brasileira, com genialidade admirável. 
 



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