Diversão e Arte

Bendito artista

Correio Braziliense
postado em 24/07/2020 04:16


Uma vaia épica, entre as mais ensurdecedoras já ouvidas foi a causa; a consequência foi Sérgio Ricardo espatifar seu violão e atirá-lo, aos pedaços, para a plateia do Festival da MPB de 1967. O gesto, transmitido pela TV Record, acabou por reduzir a carreira de um dos mais talentosos compositores de sua época, numa das maiores injustiças cometidas contra um artista no Brasil.
 
Sérgio Ricardo concorria com o samba-choro Beto bom de bola, canção intrincada, cheia de mudanças rítmicas, acordes complicados e, pode se dizer, bem fraquinha, que junta duas paixões nacionais. Já havia sido vaiada na fase classificatória e naquela noite seria apresentada com novo arranjo; a vaia foi ainda pior.
 
O cantor tentou mostrar bom humor dizendo que a música ficaria conhecida como Beto bom de vaia, o que só serviu para acirrar os ânimos. A cena pode ser vista no documentário Uma noite em 67, disponível no YouTube, e atrapalhou toda a carreira do músico, um dos pioneiros da canção engajada da segunda leva bossanovista, ao lado de Carlos Lyra e Geraldo Vandré.
Foi graças a esta turma — depois vieram Marcos Valle e outros — que o sorriso, o amor e a flor dos primeiros versos deram lugar a dureza do dia a dia do brasileiro comum, trocando a areia da praia pelos barracos da favela e abrindo espaço para a chamada “música de protesto”, entre elas, Zelão e Enquanto a tristeza não vem, ambas de Sérgio Ricardo,
A partir da vaia, Sérgio Ricardo inaugurou a galeria dos malditos, uma turma eclética e de prestígio, mas que não conseguia alcançar o sucesso popular. Eram músicos como Jards Macalé, Jorge Mautner, Tom Zé, Sérgio Sampaio, Walter Franco e muitos outros, todos com talento reconhecido, mas que não furavam o bloqueio.
 
Sérgio Ricardo passou a dividir seu tempo com a dramaturgia, trabalhando como ator, diretor, roteirista e... compositor de trilhas sonoras. Neste capítulo ele voltou a dar vazão a seu talento, principalmente em duas obras-primas: as trilhas de Deus e o diabo na terra do sol, para o filme de Glauber Rocha, e A noite do espantalho, filme dele mesmo, de 1974, indicado para representar o Brasil no Oscar, embora não tenha sido escolhido em seguida.
 
Ano passado ele lançou dois discos, um retrospectivo ao vivo, Cinema na música de Sérgio Ricardo, e um de inéditas, Algumas canções e parcerias (com Alexandre Nunes), que podem ser ouvidos no Spotify, mostrando a qualidade da música que ele fez desde 1958, quando fez o primeiro disco, e suficientes para livrar Sérgio Ricardo da lista dos malditos. Bendito seja.

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