Diversão e Arte

Instinto solidário sempre motivou cineastas; confira obras desse segmento

Obras de diretores compromissados com as circunstâncias da pandemia ampliam o olhar dos espectadores brasileiros

Correio Braziliense
postado em 27/07/2020 06:01
Maria Augusta Ramos diretora brasiliense à frente de 'Não toque em meu companheiro'
 
Em meio à pandemia, paira um convite constante e irrecusável, na percepção de sofrimentos e dificuldades de terceiros: ajudar o próximo. Soluções feitas em correntes de união ou pequenas ações isoladas, à primeira vista simples, podem se afirmar como alento para quem depende da solidariedade. A sensibilidade da empatia e o registro de gestos comunitários, em denúncias ou interesse por problemas alheios, desde sempre, motivam cineastas que têm por dom mobilizar ou registrar situações graves passíveis de serem ignoradas, dentro da correria cotidiana. Dispondo de mais tempo, as pessoas (e os espectadores) parecem readquirir a capacidade de olhar, verdadeiramente, o outro.

Retrocesso, com a perda de direitos — "que foram conquistados a muito custo", como destaca a diretora de cinema Maria Augusta Ramos — trazem na visão da cineasta uma grande dose de preocupação. Daí, a cineasta brasiliense, constantemente, afeita a temas sociais ou de direitos, ter investido forças no longa Não toque em meu companheiro, atualmente no streaming (Net Now, Oi Play, Vivo Play, FilmeFilme e Looke). No documentário, há exames das consequências da rede de apoio de colegas que se doaram, em parte, a favor de trabalhadores sumariamente demitidos em meio à crise financeira da era Collor, em 1991.

O filme avança ainda por conceitos bem atuais de neoliberalismo apregoados pelos tempos de Bolsonaro. "O neoliberalismo traz essa crença de que é possível um desenvolvimento sem a participação do Estado. A pandemia mostra com bastante clareza o tamanho desse equívoco e o perigo de se insistir nisso", observa a diretora de filmes como Justiça e O processo.

Em Não toque em meu companheiro, a instabilidade financeira de 110 pessoas (injustamente demitidas) foi vencida graças ao espírito de união de trabalhadores fortalecidos nas lutas sindicais. "Na história que o filme conta, vemos que os trabalhadores da Caixa Econômica criaram formas sofisticadas de arrecadação (para auxiliar os demitidos), usando conhecimentos como bancários, em um momento onde informações ainda não eram digitalizadas", comenta. Com tecnologia incipiente, e sem a facilidade das redes sociais solidárias, foi possível cravar uma vitória exemplar. "Não é a tecnologia que cria as ações solidárias, ela é apenas uma ferramenta", explica a diretora.

Planilhas minuciosas, feitas em folha de papel, se juntaram a um corporativismo saudável, tudo registrado no longa. "União e solidariedade, em qualquer tempo, vêm do nosso reconhecimento como ser humano", sintetiza Maria Augusta. Focada no tema, a cineasta acredita que os tempos mudam e as formas de ação e organização coletiva idem. "Vivemos em um tempo de individualismo extremo, violento. Mas persistem formas bastante surpreendentes de reação, como vimos recentemente, no movimento dos entregadores de aplicativo. A organização é criada muitas vezes da necessidade", avalia.

Uma convivência forçada, como registra o filme de Ugo Giorgetti (leia entrevista, abaixo) Dora e Gabriel, e o cotidiano compromissado com ações sociais — base para a série documental Missões de vida (na HBO), de Mara Mourão (leia depoimento) — podem ser portas para a eclosão de solidariedade no audiovisual. No primeiro caso, desconhecidos trancafiados num porta-malas têm que se ajudar, a fim de aliviar um tenso destino. Já Missões de vida prega ensinamentos a partir da atenção para com o outro. Com uma visibilidade ampliada, a partir da estreia na plataforma Mubi (presente entre quase 200 países), o documentário Indianara (obra feita em codireção de Audi Chevalier-Beaumel e o ex-estudante da UnB Marcelo Barbosa) revela os gestos de acolhimento e resistência protagonizados pela militante Indianara Siqueira, que, conduzindo a Casa Nem, promoveu o resguardo em abrigo carioca de parcela vulnerável de pessoas LGBT.
 
 
Wolney Oliveira: veia documental, em 'Soldados da Borracha' 

Denúncias e compaixão

A mescla entre um espírito de solidariedade, avizinhado da denúncia, por meio do audiovisual, empolga o cineasta cearense Wolney Oliveira, fundador do Cine Ceará e estudioso do cinema ibero-americano, pródigo no registro social e solidário. No filão, ele destaca artistas como Glauber Rocha e Eduardo Coutinho. Entre os criadores estrangeiros, os argentinos Fernando Solanas (Memoria del saqueo) e Fernando Birri (Tire dié) têm a importância registrada. Fã do cinema chileno, ele destaca exemplo de solidariedade impresso em O clube (de Pablo Larraín) e, dentre a Venezuela, a fita de Mariana Rondón Pelo malo. "É um tipo de cinematografia que ganha força, pelo fato da popularidade dos meios digitais de barateamento das produções: você pode fazer uma filmagem no celular, e fazer uma denúncia, sendo solidário com uma alguma questão. É dos papéis fundamentais do cinema", avalia.

Com a exploração da Amazônia discutida mundo afora, o mais recente filme assinado por Wolney Oliveira trata de passado e do processo nada humano de um esquema de semiescravidão e de escravidão no povoamento da área, presente no relato do longa Soldados da Borracha (selecionado pela Mostra Ecofalante de Cinema). Com estudos do escritor americano Gerry Neeleman foi possível reconstruir a história de brasileiros enganados no auxílio (e alistamento) feito para abastecer com látex os combatentes norte-americanos, no decurso da Segunda Guerra. "Fiquei revoltado com o que aconteceu: foi praticamente um genocídio. Muitos brasileiros foram abandonados. Algo patrocinado pelo governo de Getúlio Vargas, e que não tinha nenhuma questão ideológica. Foi uma mera oportunidade da obtenção de uma negociação (financeira) vantajosa", demarca Wolney. Daí o painel de denúncia e de solidariedade junto a famílias afetadas pelas perdas humanas — e cujos antepassados, nos anos de 1940, compraram versões de futura riqueza e de assistência médica e dentária.
 
Ugo Giorgetti: movimento de solidariedade tende a ser temporário 

Três perguntas// Ugo Giorgetti, diretor do filme Dora e Gabriel
 
Atos solidários transparecem na tua filmografia? Com Dora e Gabriel, nota que personagens criem elo de solidariedade?


Nunca pensei muito nesse aspecto. Mas você tocou num ponto inesperado a respeito de Dora e Gabriel. Pouca gente que viu o filme notou o tema da solidariedade expresso na convivência das duas pessoas. Talvez não apareça tanto porque ficou encoberto por várias camadas de outras interpretações que o filme oferece. Sem dúvida, porém, está presente. Mas essa solidariedade é episódica, existe enquanto estão presos. Não acredito em nenhum futuro desses personagens, depois de terminada a experiência.


Como vê o cinema explorando o tema da solidariedade, no atual momento?


Nenhum filme me tocou recentemente no segmento. Não vejo o cinema explorando o tema. Pode ser falha minha: sou mau espectador. Acho que quem tem explorado o tema, como sempre, de maneira exagerada, é a televisão, nos noticiários.


Como estudioso de filosofia, crê que solidariedade seja dos atos mais frutíferos, dada a pandemia?


Pode ser. Quando acontecimentos particularmente dramáticos aparecem, há, logo depois, uma onda de solidariedade, geralmente por causa do choque pelas dimensões da catástrofe. Brumadinho, embora a comparação não seja a mais adequada, desencadeou também enorme movimento de solidariedade. Depois, independente da violência da tragédia, tudo volta ao normal. E com a volta à normalidade, a primeira a desaparecer é exatamente a solidariedade.


Palavra de especialista
 
Mara Mourão: cinema solidário em primeiro plano 

"Como cineasta sempre quis contar histórias que promovam transformação social. Foi com o documentário Doutores da alegria, que percebi resposta do público completamente diferenciada. Me diziam que o filme havia literalmente mudado a vida delas. Fiquei surpresa com o impacto do filme. Foi quando resolvi fazer um filme na mesma linha, retratando empreendedores sociais ao redor do mundo. Quem se importa me fez sentir na pele o poder do cinema como ferramenta de impacto social.

A última série que dirigi é chamada Missões de vida. O interessante é que a HBO escolheu o momento da pandemia para lançar esta série, justamente porque ela retrata pessoas com missões de vida muito fortes, que vivem guiadas pelo propósito de ajudar o próximo nas áreas da educação, saúde, social e ambiental. A série estimula reflexão, em relação à atualidade. Quando somos obrigados por uma pandemia a fazer esse exercício de resiliência e empatia, os personagens da série Missões de vida são um exemplo disso. Eles simplesmente acreditam que são capazes de transformar e inspirar mudanças na sociedade, e arregaçam as mangas. Uma mensagem de otimismo, solidariedade, de que existem pessoas muito boas e que somos capazes de nos reinventar.
 
O impacto social que um filme pode causar não passa apenas pela bilheteria. É uma outra métrica, impossível de mensurar. É como a frase atribuída a Albert Einstein: 'Nem tudo o que conta pode ser contado, e nem tudo que pode ser contado conta'. É muito gratificante receber notícias de pessoas que iniciaram um trabalho social depois de assistir a um filme!" 
 

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