Diversão e Arte

Instinto solidário no cinema

Correio Braziliense
postado em 27/07/2020 04:17
Maria Augusta Ramos diretora brasiliense à frente de Não toque em meu companheiro
 
 
 
 

Em meio à pandemia, paira um convite constante e irrecusável, na percepção de sofrimentos e dificuldades de terceiros: ajudar o próximo. Soluções feitas em correntes de união ou pequenas ações isoladas, à primeira vista simples, podem se afirmar como alento para quem depende da solidariedade. A sensibilidade da empatia e o registro de gestos comunitários, em denúncias ou interesse por problemas alheios, desde sempre, motivam cineastas que têm por dom mobilizar ou registrar situações graves passíveis de serem ignoradas, dentro da correria cotidiana. Dispondo de mais tempo, as pessoas (e os espectadores) parecem readquirir a capacidade de olhar, verdadeiramente, o outro.

Retrocesso, com a perda de direitos — “que foram conquistados a muito custo”, como destaca a diretora de cinema Maria Augusta Ramos — trazem na visão da cineasta uma grande dose de preocupação. Daí, a cineasta brasiliense, constantemente, afeita a temas sociais ou de direitos, tem investido forças no longa Não toque em meu companheiro, atualmente no streaming (Net Now, Oi Play, Vivo Play, FilmeFilme e Looke). No documentário, há exames das consequências da rede de apoio de colegas que se doaram, em parte, a favor de trabalhadores sumariamente demitidos em meio à crise financeira da era Collor, em 1991.

O filme avança ainda por conceitos bem atuais de neoliberalismo apregoados pelos tempos de Bolsonaro. “O neoliberalismo traz essa crença de que é possível um desenvolvimento sem a participação do Estado. A pandemia mostra com bastante clareza o tamanho desse equívoco e o perigo de se insistir nisso”, observa a diretora de filmes como Justiça e O processo.

Em Não toque em meu companheiro, a instabilidade financeira de 110 pessoas (injustamente demitidas) foi vencida graças ao espírito de união de trabalhadores fortalecidos nas lutas sindicais. “Na história que o filme conta, vemos que os trabalhadores da Caixa Econômica criaram formas sofisticadas de arrecadação (para auxiliar os demitidos), usando conhecimentos como bancários, em um momento em que informações ainda não eram digitalizadas”, comenta. Com tecnologia incipiente, e sem a facilidade das redes sociais solidárias, foi possível cravar uma vitória exemplar. “Não é a tecnologia que cria as ações solidárias, ela é apenas uma ferramenta”, explica a diretora.

Planilhas minuciosas, feitas em folha de papel, se juntaram a um corporativismo saudável, tudo registrado no longa. “União e solidariedade, em qualquer tempo, vêm do nosso reconhecimento como ser humano”, sintetiza Maria Augusta. Focada no tema, a cineasta acredita que os tempos mudam e as formas de ação e organização coletiva idem. “Vivemos em um tempo de individualismo extremo, violento. Mas persistem formas bastante surpreendentes de reação, como vimos recentemente, no movimento dos entregadores de aplicativo. A organização é criada muitas vezes da necessidade”, avalia.

Uma convivência forçada, como registra o filme de Ugo Giorgetti Dora e Gabriel, e o cotidiano compromissado com ações sociais — base para a série documental Missões de vida (na HBO), de Mara Mourão — podem ser portas para a eclosão de solidariedade no audiovisual. No primeiro caso, desconhecidos trancafiados num porta-malas têm que se ajudar, a fim de aliviar um tenso destino. Já Missões de vida prega ensinamentos a partir da atenção para com o outro. Com uma visibilidade ampliada, a partir da estreia na plataforma Mubi (presente entre quase 200 países), o documentário Indianara (obra feita em codireção de Audi Chevalier-Beaumel e o ex-estudante da UnB Marcelo Barbosa) revela os gestos de acolhimento e resistência protagonizados pela militante Indianara Siqueira, que, conduzindo a Casa Nem, promoveu o resguardo em abrigo carioca de parcela vulnerável de pessoas LGBTQIA+.

Denúncias e compaixão

A mescla entre um espírito de solidariedade, avizinhado da denúncia, por meio do audiovisual, empolga o cineasta cearense Wolney Oliveira, fundador do Cine Ceará e estudioso do cinema ibero-americano, pródigo no registro social e solidário. No filão, ele destaca artistas como Glauber Rocha e Eduardo Coutinho. Entre os criadores estrangeiros, os argentinos Fernando Solanas (Memoria del saqueo) e Fernando Birri (Tire dié), têm a importância registrada. Fã do cinema chileno, ele destaca exemplo de solidariedade impresso em O clube (de Pablo Larraín) e, dentre a Venezuela, a fita de Mariana Rondón Pelo malo. “É um tipo de cinematografia que ganha força, pelo fato da popularidade dos meios digitais de barateamento das produções: você pode fazer uma filmagem no celular, e fazer uma denúncia, sendo solidário com uma alguma questão. É dos papéis fundamentais do cinema”, avalia.

Com a exploração da Amazônia discutida mundo afora, o mais recente filme assinado por Wolney Oliveira trata de passado e do processo nada humano de um esquema de semiescravidão e de escravidão no povoamento da área, presente no relato do longa Soldados da Borracha (selecionado pela Mostra Ecofalante de Cinema). Com estudos do escritor americano Gerry Neeleman foi possível reconstruir a história de brasileiros enganados no auxílio (e alistamento) feito para abastecer com látex os combatentes norte-americanos, no decurso da Segunda Guerra. “Fiquei revoltado com o que aconteceu: foi praticamente um genocídio. Muitos brasileiros foram abandonados. Algo patrocinado pelo governo de Getúlio Vargas, e que não tinha nenhuma questão ideológica. Foi uma mera oportunidade da obtenção de uma negociação (financeira) vantajosa”, demarca Wolney. Daí, o painel de denúncia e de solidariedade junto a famílias afetadas pelas perdas humanas — e cujos antepassados, nos anos de 1940, compraram versões de futura riqueza e de assistência médica e dentária.

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