Diversão e Arte

'Pandemônio' traz autores refletindo sobre os rumos pós-coronavírus

No e-book gratuito, Fred Di Giacomo e Cristina Judar reúnem nove autores que refletem sobre o mundo pós-pandemia

Correio Braziliense
postado em 30/07/2020 09:54
Fred Di Giacomo pediu aos autores que escrevessem contos que refletissem sobre a pandemiaA pandemia fechou livrarias, paralisou edições de livros e dificultou o acesso aos títulos físicos, mas fez da literatura um produto ainda mais necessário. Pensando nisso e um pouco alimentado pela frustração de ver parte de seus projetos suspensos, o escritor Fred Di Giacomo convidou a autora Cristina Judar para criar uma coletânea de contos sobre o momento vivido pelo planeta. O resultado está em Pandemônio, publicado on-line, em formato e-book e com download gratuito. O livro reúne nove autores, sendo quatro residentes no Brasil e cinco na Alemanha, numa tentativa de encontrar na literatura de ficção uma voz para refletir sobre os rumos do planeta, da sociedade e da humanidade.

Desde que participou da Primavera Literária Brasileira, na Universidade de Sorbonne (Paris), em março de 2019, Fred Di Giacomo e Cristina Judar pensam sobre formas de divulgar a produção brasileira contemporânea no mundo. “Vivemos a melhor fase da literatura brasileira nos últimos 50 anos e pouca gente sabe disso. É uma geração de autoras e autores ainda muito restrita às pequenas editoras”, diz o autor do romance Desamparo. “Veio a pandemia de covid-19, era abril, e eu fiquei pensando: está todo mundo em casa, as livrarias e saraus estão fechados, está difícil comprar livro físico, as grandes editoras não estão em muita vantagem. Por que a gente não lança um ebook Pandemônio, reunindo autores contemporâneos massa, com contos meio 'góticos – realismo mágico' inspirados na pandemia e no isolamento e que se passem em Berlim ou São Paulo?”, conta.

A Alemanha pareceu natural para Giacomo, que reside no país há dois anos e é aluno de doutorado em literatura contemporânea brasileira na Freie Universität, de Berlim. As diferenças culturais também pareceram ricas a Cristina Judar, que há um tempo queria mergulhar em projeto capaz de estabelecer conexões culturais entre São Paulo e Berlim. “Com o passar do tempo, somou-se a isso a ocorrência da pandemia e o agravamento da crise política no Brasil, o que deixou ainda mais claras as diferenças e contrastes entre uma realidade e outra. Como escritores, naturalmente pensamos em como a experiência de viver em um desses polos impactaria na produção literária, tanto na nossa como na de nossos colegas.”, conta Cristina.

Segundo a escritora, os autores foram escolhidos de acordo com os próprios estilos e trajetórias. Os organizadores estavam interessados nas visões particulares de cada um e, sobretudo, na diversidade de narrativas e olhares. “Algo importante e necessário foi escolher autores que não necessariamente fazem parte da mesma 'bolha'. Caso contrário, não haveria sentido em convidar várias pessoas, pois não teríamos diversidade de estilos, de ideias, diferenças em relação à origem, à realidade vivida por cada um”, avisa Cristina.

Prestígio

 
Entre os autores há, principalmente, nomes consagrados em prêmios como o São Paulo de Literatura, o APCA, o Sesc e o Jabuti. Fazem parte da lista, além da própria Cristina e de Giacomo, Aline Bei, Jorge Ialanji Filholini, Raimundo Neto, residentes em São Paulo, e Carola Saavedra, Alexandre Ribeiro, Karin Hueck e o alemão Carsten Regel, radicados na Alemanha.

Para Cristina, a literatura, de forma geral, reflete as condições e situações vividas pela sociedade e, com a pandemia, as reações dos autores têm sido muito plurais. “Há ações individuais e coletivas, assim como a nossa e as de outros grupos. As redes sociais também representam um canal de expressão de alcance livre, amplo e imediato. Há publicações digitais em andamento, projetos multidisciplinares, benfeitorias estão sendo organizadas. Inúmeras ideias colocadas em prática para fazer todas essas vozes literárias circularem”, explica.

As diferenças entre quem faz literatura na Alemanha e no Brasil também aparecem nos contos. Giacomo aponta, por exemplo, o texto do alemão Carsten Regel, uma narrativa muito mais leve do que a dos colegas brasileiros. “Quem faz literatura também sofre com a doença e a incompetência do governo brasileiro em combatê-la, né?”, conta Giacomo. “Teve mais de um autor convidado por nós que não conseguiu criar um conto para a Pandemônio porque a pandemia, as mortes, o confinamento, a falta de grana os paralisou. São tempos difíceis, não dá para romantizar o sofrimento. O Raimundo Neto, um dos autores da Pandemônio, disse várias vezes ser contra o culto à produtividade durante a pandemia. Acho que, no nosso caso, escrever era um alívio, mas também uma forma de tentar ‘fazer algo’”. Mesmo assim, a coletânea faz um rico painel de nomes contemporâneos e é um produto direto de uma situação mundial.
 
Cristina Judar queria trabalhar num projeto que divulgasse a literatura brasileira 
 


Entrevista: Fred Di Giacomo e Cristina Judar

 
De todas as artes, a literatura é uma das poucas que não é produzida nem consumida coletivamente. Qual o papel dela nesse momento que o planeta vive? 

 
Fred Di Giacomo: Acho que a literatura não "precisou parar" na pandemia, como outras formas de expressão. Dança, cinema, shows, teatro... essas artes tiveram, literalmente, que fechar as portas e suspender suas atividades. Mas muitos escritores seguiram escrevendo, até para não enlouquecer. O gargalo foram as editoras que deram uma desacelerada nas impressões de livros, por isso acho importante iniciativas como a Pandemônio, mas também o trabalho de revistas como a Gueto, 451, Piauí e outras tantas que andam publicando muita coisa massa, além das lives de autores e editores como as do Maílson Furtado, com autores do sertão cearense, e as da Julie Dorrico, com escritores indígenas.
 
Cristina Judar: Depende muito de qual é a sua noção de coletivo. Se pensarmos em milhares de pessoas, realmente, não há o que dizer. A não ser em raríssimos casos, o alcance da literatura é nada se comparado ao do cinema hollywoodiano ou da música pop, por exemplo. Mas, se consideramos coletivos de 10, 30, 60, 70, 500 pessoas, essa perspectiva, por mais modesta que pareça, não necessariamente deve ser invalidada. Se tivéssemos em mente apenas esses números (e a impossibilidade de a literatura brasileira competir com eles), nem seríamos escritores, teríamos desistido antes mesmo de começar a escrever a primeira linha (risos). Mas, se olharmos para as vanguardas artísticas que vieram antes de nós e, de maneira ainda mais segmentada, para os grupos de vanguarda literária, alguns deles eram compostos por oito, dez, doze indivíduos. Que, anos mais tarde, acabaram impactando na produção artística de uma infinidade de escritores, em diferentes lugares do mundo e em diversos períodos históricos. Ou seja, essa noção de “coletividade e abrangência” é muito subjetiva e precisa ser olhada com cautela.  



Podem falar um pouco como os temas foram abordados em Pandemônio e quais são os aspectos mais interessantes dos contos? 

 
Cristina Judar: É interessante notar a abrangência e a multiplicidade de vieses que conseguimos com esses nove textos. Temos a marca do racismo praticado hoje na Alemanha; uma reflexão sobre corpos não-normativos e  identidade de gênero; o esgotamento dos recursos naturais; a grave crise política no Brasil e seus desdobramentos catastróficos; as possíveis próximas ondas de contaminação; o aniquilamento da essência das crianças que têm sido adotadas no cenário pandêmico brasileiro, com toda a dor e a inadequação por elas sentida; as semelhanças entre as práticas de sobrevivência e de confinamento do holocausto com as experiências de confinamento e restrição da quarentena. Isso para citar alguns dos aspectos, pois há muitos outros e é isso o que os leitores descobrirão ao ler a antologia.       

Fred Di Giacomo: Acho que vale dizer que os contos não são "contos sobre covid", mas fotografias desse momento tenso que o Brasil (e o mundo) vive:  crise econômica, polarização ideológica, ascensão do autoritarismo e, ainda por cima, a pandemia. Só que a forma como os autores trataram isso não é necessariamente uma coisa pesada e depressiva. O leitor precisando de um alívio em meio ao caos vai encontrar nesse trabalho, gratuito, momentos de respiro nos contos do Carsten Regel e da Aline Bei, por exemplo. Acho que também existem contos que vão para um lado mais fantástico, como o meu (Primavera) e o trabalho do Jorge Filholini, coisas mais realistas, como os trabalhos da Karin Hueck e do Alexandre Ribeiro, e, até, textos poéticos como os da Cristina Judar e da Carola Saavedra.

 
Quais são as diferenças entre as visões e narrativas dos autores brasileiros e do alemão? 


Fred Di Giacomo: A divisão, na verdade, é mais entre onde moram do que onde nasceram. Temos autores que vivem no Brasil (4) e os que vivem na Alemanha (5). No conto do Carsten dá para sentir um clima bem mais leve, uma coisa meio Bukowski, boêmia, uma aventura underground pelas baladas fechadas de Berlim. É uma coisa quase impensável de um autor brasileiro escrever hoje.
 
Cristina Judar: Desde o início, o projeto esteve aberto para o surgimento de diferenças, similaridades e ambiguidades, assim como para possíveis simbioses, a partir dos dois cenários. O contexto social de cada autor, algo que abre e amplifica o leque de significados, abordagens e representações, é outro fator a ser considerado: com que olhos e coração ele apresenta literariamente a realidade na qual hoje está inserido, seja aqui ou na Alemanha? A literatura também é um reino de inexatidão, de brumas. E isso faz parte de muito do que compõe a Pandemônio, embora algumas diferenças sejam óbvias, especialmente em relação ao caráter apocalíptico que se apresenta na maioria dos contos de autores que hoje se encontram no Brasil. 


Há questões e reflexões que se sobressaem nos contos? 

 
Fred Di Giacomo: É difícil generalizar a obra de autoras e autores tão diferentes, vindos de lugares de fala díspares, como o Alexandre Ribeiro, um jovem negro criado em uma favela em Diadema, e o Carsten Regel, um escritor alemão que lançou um filme produzido pela Warner-Bros. Mas dá para perceber um certo clima de Ideias para adiar o fim do mundo (lembrando do livro do mestre Ailton Krenak), uma grande reflexão sobre o modo como vivemos em nossa sociedade ulta-consumistas e desigual e o quanto a pandemia destacou a loucura desse "normal" que habitamos. São narrativas muito críticas; mesmo que algumas usem o humor e outras o terror para fazer essa crítica. É óbvio para mim, também, o retrato do "Brasil de Bolsonaro" que esses contos criam, mesmo que não sejam implícitos nisso. Teremos uma versão em inglês para o mercado internacional acho que a antologia pode dar um bom norte da alma do brasileiro para um leitor estrangeiro curioso. Seja nas narrativas mais realistas que fotografam o cotidiano de nosso confinamento, seja nas distopias e pesadelos que apontam os medos do mal que ainda pode vir.

 

Por que contos? 

 
Fred Di Giacomo: Para uma antologia com vários autores, as opções basicamente seriam poemas ou contos. Pensando de forma prática, eu e a Cristina temos mais experiência e contatos no mundo da prosa do que da poesia. A ideia, também, era oferecer um pouco de entretenimento (e reflexão) grátis para as pessoas que estão em casa, uma espécie de "seriado" com episódios independentes, mas temática única que elas pudessem acompanhar em algumas horas. Nosso Black Mirror inspirado na realidade brasileira, que é sempre mais maluco do que o próprio Black Mirror. Pandemônio tem narrativas muito visuais e cinematográficas, são histórias que o leitor "assiste. Acho que o conto tem esse poder.

 

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