Diversão e Arte

Alan Parker, morto aos 76 anos, influenciou cineastas da cidade

Dedicado a gêneros variados, Alan Parker, morto por doença persistente, manteve apreço pelos musicais e abasteceu dramas de fundo transformador


“Vivi uma vida encantada” foi como, certa vez, simplificou o cineasta inglês Alan Parker, morto, ontem, aos 76 anos, com obra reconhecida por 10 prêmios Oscar e 19 conquistas no Bafta, troféus votados pela Academia Britânica. Filho único de família modesta, Parker, que anunciou a aposentadoria, em 2015, morreu, segundo informações da família, depois de lutar contra doença persistente. Há 18 anos, ele foi nomeado cavaleiro da realeza britânica. Durante a profissão, extremamente marcada pela associação com o videoclipe, ele criou obras inesquecíveis, e numa ocasião ressaltou que “música e imagens, juntas, são muito poderosas”.

“Parker tem o espírito sempre muito ligado ao pop, como se nota em filmes como The Commitments — Loucos pela fama (sobre uma banda irlandesa que se aventura no soul) e Pink Floyd — The Wall (1982). No The Wall, ele consegue tratar de uma ópera muito politizada, mas reveste com a roupagem do entretenimento. Como na linguagem dos filmes dos Beatles Os reis do iê, iê, iê e Help!, ele atualiza filmes de gênero, e consegue, mesmo com elementos críticos ao sistema educacional, por exemplo, tornar tudo agradável”, observa o cineasta e crítico Sérgio Moriconi. As mesmas características ainda servem para Evita (1996), o musical baseado em obra de Andrew Lloyd Webb e centrado na figura de Eva Perón, vivida por Madonna, na visão de Moriconi.
 

Saiba Mais

 

Versátil, Alan Parker transitou entre o registro satírico de adolescentes interpretando gângsters de peso, na comédia Bugsy Malone: Quando as metralhadoras cospem (de 1976, com uma muito jovem Jodie Foster), por exemplo, antes de ser consagrado diante da repercussão do drama penitenciário O Expresso da Meia-Noite (1978), na mesma veia a favor dos direitos humanos que atravessa o dramático Mississipi em chamas (1988). Para além da realização em cinema, Parker ainda agiu nos bastidores da estruturação das políticas de cinema inglesas, como representante do British Film Institute.

O cineasta que impulsionou o ânimo dos musicais, a partir da criação do longa Fama (1980), com presença singular de Irene Cara, influenciou a carreira do diretor Evaldo Mocarzel (Do luto à luta), um artista muitas vezes integrado a seleções do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. “Parker podia, por vezes, lidar com metáforas meio óbvias e talvez até grotescas, em certa medida, mas me marcou profundamente com obras como The Wall, uma ópera rock forte, pelo uso de músicas presentes em gerações. Além disso, com Fama, ele conquistou meu lado espectador. Assistindo ao filme, aumentei minha vontade de ser artista. Isso, com um cinema como o dele, sempre carregado nas tintas dramáticas excessivas”, conta Mocarzel.

Libertário

Dados os exageros de rebuscamento visual, muitas vezes Parker se fundia ao estilo de pares e contemporâneos como Adrian Lyne (outro vindo do mercado da publicidade) e Oliver Stone (recorrente, quando o tema era a Guerra do Vietnã). Na linha bélica, ou melhor, pacifista, Alan Parker assinou longas como Birdy — Asas da liberdade, com a amizade entre os soldados representados por Mathew Modine e Nicolas Cage, além de ter respondido por Bem-vindos ao paraíso (1990), ambientado às vésperas da Segunda Guerra.

Cineasta e figura ligada ao rock, o diretor brasiliense Jimmy Figueiredo (Cru) também é um dos admiradores do diretor inglês morto ontem. “The Wall, o filme, foi um videoclipe muito inteligente. Prenunciava a queda do Muro de Berlim, praticamente. O filme tinha animações que talvez, hoje, pareçam datadas, mas apontavam para muita criatividade. Acho que outro filme interessante dele é o Coração satânico (1987) que, com uma veia hollywoodiana, foi um thriller muito bem executado. Isso sem dizer da cinebiografia Evita. É importante ver as realidades latinas lançadas em filmes para o mundo, mesmo que venha pela ótica de um inglês”, analisa o diretor.

Nos últimos anos da carreira, Alan Parker se dedicou a filmes que traziam estrutura menos grandiosa, num rumo que fazia lembrar os respiros na carreira, com longas como A chama que não se apaga (1982), drama familiar cômico estrelado por Albert Finney e Diane Keaton. No ocaso da obra, de 14 longas, trabalhou com atores do porte de Anthony Hopkins (O fantástico mundo do Dr. Kellog), Emily Watson (As cinzas de Ângela) e a dobradinha Kevin Spacey e Kate Winslet (A vida de David Gale). Sempre convicto do esforço por alcançar a perspectiva autoral perseguida pela carreira, Alan Parker deixou claro, em muitas entrevistas, o embate muitas vezes mantido com produtores e os estúdios. Na vida pessoal, cultivou uma família com cinco filhos e sete netos, além, claro, da esposa Lisa-Moran Parker.
 
 
 
O Expresso da Meia-Noite (1978) 
• Baseado em parte da vida do estudante Billy Hayes, traz a densa trama de um rapaz preso na Turquia, e acusado de contabando. O norte-americano é interpretado por Brad Davis, e passa pelas mais cruéis situações, quando da prisão, pelo porte de haxixe. John Hurt também marca presença, e duas cenas são inesquecíveis: a que registra o pulsar do coração do protagonista no aeroporto e o encontro (através do vidro) com a amada. Cena, por vezes, parodiada, na história do cinema. Primeira (de duas) indicações ao Oscar de melhor diretor.

Misssissipi em chamas (1988) 
• Um dos filmes, infelizmente, mais atemporais de Alan Parker, contempla o cinismo e as barreiras para o exorcismo de preconceitos raciais no Mississipi com a famigerada Ku Klux Klan. Willem Dafoe e Gene Hackman, às turras, encabeçamo o elenco, como autoridades destacadas para investigar eventos e desaparecimentos, em meados dos anos de 1960. Alan Parker, neste filme que revelou Frances McDormand, obteve indicação ao Oscar de melhor diretor, e o filme, nas lista dos finalistas, ainda concorreu a outros cinco prêmios.

Birdy — Asas da liberdade (1984)
• Ganhou o Prêmio Especial do Júri em Cannes. Com uma interpretação expressiva e impactante de Mathew Modine, no papel de um jovem que retorna, atormentado, da guerra; o filme traz a metáfora clara: num processo de libertação dos horrores, Birdy pretende alçar voo, obcecado pela ideia de ser um pássaro. O final é desconcertante e Nicolas Cage tem uma cena comovente, quase ninando o traumatizado amigo no colo. 
 
 
Depoimento 


"The Commitments foi um estímulo para meu longa mais recente, Ainda Temos a Imensidão da Noite. Sempre que alguém pré-julgava minha opção de fazer um longa com músicos também na posição de atores, o filme do Parker vinha à mente e me mostrava
que era possível. Um realizador precisa se alimentar do que outros fizeram antes dele, faz parte do processo de ganhar autoconfiança. The Commitments é um filme para a eternidade. Todos os filmes de Parker traziam o apelo da construção de personagens e da direção de atores"

Gustavo Galvão, cineasta