Correio Braziliense
postado em 17/01/2020 04:17
Nos bastidores da notícia
Descolado da responsabilidade inerente ao jornalismo, um sistema de toma lá, dá cá impera, maliciosamente, no retrato da realidade impressa em O escândalo, filme de Jay Roach que concorre a três prêmios Oscar, pelas indicações das atrizes Charlize Theron e Margot Robbie (essa, coadjuvante) e na categoria de caracterização (maquiagem e penteado). Uma cadeia de apoio mútuo entre fontes (para a noticiosa rede global da Fox News) e os realizadores das nada isentas reportagens dá a dimensão dos pilares podres desbaratados na trama. Mesmo com toda a gravidade, esse tema é menor, diante da denúncia mais urgente de O escândalo relacionada a assédio sexual.
Um sistema que institui a quebra da parede do respeito está desenhado no filme: há, sim, objetificação das mulheres; a protagonista (interpretada por Theron) pode ser chamada de “vadia” (na mais branda ofensa) e, a quilômetros de civilidade, e às vésperas de ser eleito (em 2016), o presidente Donald Trump é idolatrado pela ausência de “filtros políticos”. Corroteirista do intrincado A grande aposta (2015), Charles Randolph, no novo filme (sem colaboradores), deixa perceber as dificuldades de condensar (dada a falta de sutileza) datas, personagens e detalhes de um caso real que movimentou milhões de dólares em termos de indenizações.
Num ambiente de trabalho demarcado por extrema competitividade, a âncora de tevê Megyn Kelly (Theron, radiante) reluta, mas embarca em investida investigativa, para decifrar o impacto do assédio na empresa em que recai enorme suspeição. Os corredores da Fox News estariam repletos de “boas garotas”, desenvoltas nos serviços e que acatam padrões de beleza e sensualidade instaurados pelo comando do indecente predador, de linguagem vulgar, interpretado (sob excelência) por John Lithgow (Dexter): Roger Ailes (morto em 2017).
A realidade norte-americana descrita no filme dialoga com o Brasil contemporâneo. Atacar quem postula ideias discordantes, agressões fortuitas, o registro de uma escalada no número de armas e radicalismo expresso em franqueza cínica somatizam as condições para que Ailes encontre impunidade. “Tesão e ambição” passam a comungar, na pequena sociedade dos funcionários da Fox, abafados por um conservadorismo difuso. Sob uma ditadura da aparência, que achata a personalidade de personagens como as de Nicole Kidman e Margot Robbie (respectivamente, Gretchen e Kayla), O escândalo revela machista atmosfera em que piadinhas e alfinetadas encadeiam malefícios ainda mais pesados.
Diretor de pequenas sagas cinematográficas cômicas, entre as quais Austin Powers e Entrando numa fria, o diretor Jay Roach não parece o nome ideal para conduzir O escândalo. Ele dá um acabamento televisivo à fita, que, entretanto, não fica comprometida. Depurando o jogo de denúncias e quebra de confianças, o diretor não se diferencia.
No clã ou facção representado pelos funcionários de uma empresa compromissada com republicanos, inflada por manda-chuvas que alardeiam qualificações depreciativas para mulheres é um bálsamo testemunhar a existência da personagem Jess (Kate McKinnon, lembrada como a produtora musical, no longa Yesterday). Lésbica e subversiva, ela se diz alguém que “prospera em ambientes tóxicos”. Outra tirada de humor (ácido) no filme associa o empenho sexual de Ailes (usuário de andador) a benefícios do viagra.
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