Na década de 1990, o governo foi obrigado a assumir vários ;esqueletos; trancados no armário.
Eram dívidas multibilionárias escondidas nas gavetas da administração, que não faziam parte da contabilidade oficial. Quando foram reconhecidas, causaram uma explosão no endividamento público, que saltou de 30% do Produto Interno Bruto (PIB) para 50%. Embora o assunto tenha caído no esquecimento, uma ameaça semelhante paira hoje sobre o equilíbrio das contas. As ações judiciais contra a União e os passivos sob controle do Tesouro Nacional representam um megaesqueleto potencial de pelo menos R$ 800,7 bilhões. A magnitude dessa cifra pode desmontar o ajuste fiscal. Ela equivale a 64,3% de tudo o que os governos devem hoje e a 27,3% do PIB acumulado em 12 meses.
Embora isso seja possível, é difícil que a bomba estoure nas mãos da equipe econômica de uma vez só. Mas basta que a União perca alguns processos para as contas públicas se desarrumarem completamente. O maior exemplo é o do crédito-prêmio do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), um incentivo tributário aos exportadores de produtos manufaturados que o governo garante ter sido revogado em 1983. As empresas asseguram, porém, que o benefício ainda está em vigor. O impacto da causa, em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), é de R$ 288 bilhões. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, está muito preocupado e já fez várias visitas ao STF para tratar do assunto.
;Sem dúvida, esses valores representam um risco significativo para o equilíbrio das contas públicas;, admite o procurador-geral adjunto da Fazenda Nacional, Fabrício da Soller, responsável pelos processos tributários. Ele está animado sobre as perspectivas de vitória no caso do crédito-prêmio no STF, com a edição de uma súmula vinculante para direcionar o julgamento nas instâncias inferiores. Se ganharem, os exportadores poderão compensar os valores com impostos devidos, fazendo um encontro de contas com o Fisco. A outra opção é receber os recursos via precatório incluído no orçamento federal do ano seguinte. ;A União tem feito os pagamentos no prazo determinado pela Constituição.;
O STF analisa outros três processos com potencial destrutivo para o equilíbrio fiscal. Numa causa estimada em R$ 60 bilhões, sobre a validade da inclusão do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) na base de cálculo da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), o governo está perdendo por 6 a 1. Outro tema é a constitucionalidade da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) na base do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ). Essa ação, empatada em 1 a 1, pode custar R$ 40 bilhões. O terceiro é a exigência da CSLL sobre receitas de exportações, no valor de R$ 15 bilhões. O placar está em 4 a 4 ; o Supremo tem 11 ministros.
Mesmo que perca, a procuradoria pode pedir que o STF module a decisão. A modulação é um instituto recentemente adotado segundo o qual o Supremo pode decidir a partir de quando sua determinação começa a valer. Os ministros podem resolver que o ICMS sairá do cálculo da Cofins só depois da data do julgamento, apagando todos os efeitos passados, por exemplo. Nesse caso, o governo não arcaria com a dívida antiga. Essa fórmula tem sido invocada principalmente quando há danos grandes aos cofres públicos ou se a validade integral da solução causar prejuízos sociais. ;Isso não é privilégio do Estado. Os contribuintes também podem pedir que esse efeito seja dado;, diz Soller.
E EU COM ISSO
O ajuste fiscal, ameaçado pelos novos esqueletos, é crucial para a estabilidade econômica do país, conquistada a duras penas. Se o governo perder processos bilionários, o Tesouro será obrigado a emitir títulos para honrar os compromissos. A opção seria pagar uma parcela menor dos juros sobre o endividamento público. Tudo isso resulta em descontrole das contas, o que provoca inflação. No fim, quem paga o pato é o trabalhador, que vê diminuir o poder de compra de seu salário.
MEMÓRIA
Os esqueletos de 90
Na tentativa de tornar o esforço pelo ajuste fiscal mais concreto, a equipe econômica do presidente Fernando Henrique Cardoso trouxe à tona as dívidas ignoradas na contabilidade pública. O principal passo foi refinanciar os débitos de estados e municípios. O Tesouro
Nacional assumiu o passivo de R$ 275 bilhões e passou a ser credor de governos estaduais e
prefeituras. Outros R$ 237 bilhões diziam respeito a despesas com o saneamento dos bancos
estaduais, capitalização do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal, cujos balanços
estavam contaminados pelo calote de ruralistas e subsídios, o início da rolagem do Fundo de
Compensação de Variações Salariais (FCVS), que cobria os financiamentos habitacionais, e a liquidação de estatais, como a Siderbrás. O acordo para a atualização do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) custou mais R$ 38 bilhões. Como resultado, a dívida líquida saltou de 30,01% do PIB em 1994 para 50,47% em 2002, último ano da administração FHC.