Marcone Gonçalves
postado em 02/05/2010 10:12
Quem não consegue pagar uma dívida sabe que vai enfrentar um calvário até ajustar suas contas. O nome sujo impede o acesso ao crédito e ao cheque e provoca até a desconfiança dos comerciantes, amigos e parentes. Com os países, ocorre algo parecido. No momento em que o mundo assiste a mais uma crise causada pelo descontrole das contas na Grécia, um ex-caloteiro, o Brasil, se apresenta como um exemplo de que é possível dar a volta por cima.O agora bom moço das finanças públicas arrumou a casa (1)depois de ter protagonizado sucessivos calotes e diversas maxidesvalorizações da moeda e finalmente, em 1999, ter sido sacudido por uma crise de desconfiança parecida com a grega, que o obrigou a mudar de postura. Com base em um acordo político sem precedentes, governadores e prefeitos foram proibidos de gastar sem ter dinheiro, de repassar a dívida para os seus sucessores e, principalmente, de continuar sendo socorrido pelos recursos do contribuinte.
Para deixar claro que a farra com dinheiro público acabara, foi promulgada em maio de 2000 a Lei Complementar n; 101, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que, na próxima terça-feira completa 10 anos. O normativo legou uma série de benefícios à estabilidade econômica e administrativa do país. Um deles dá para medir: o desempenho das contas dos estados. No período de vigência da lei, a dívida estadual cresceu 90,27% e atingiu R$ 351,1 bilhões. A expansão poderia ser preocupante, se não fosse o fato de que mais dívida só pôde ser feita porque o governador arranjou recursos para pagar. E neste mesmo tempo, as receitas dos estados subiram quase 200%, passando de R$ 108,4 bilhões para R$ 307,4 bilhões.
Outras conquistas
Há, porém, outros resultados da lei que não se traduzem em números, mas são fáceis de perceber. Os atrasos de quatro e até seis meses no pagamento dos salários de servidores públicos acabaram, aumentou a transparência das informações e terminaram as renegociações de dívidas no Congresso cujos custos acabavam sendo repassados ao Tesouro Nacional.
Para Ubiratan Aguiar, presidente do Tribunal de Contas da União, a lei fiscal é uma das maiores conquistas da administração pública nos últimos 20 anos. ;Essa lei traz o que todo casal sempre fez com o orçamento doméstico: planejar e organizar o que gasta de acordo com o que ganha;, assinala Aguiar, que preside o órgão responsável por fiscalizar o cumprimento da lei na esfera federal. ;Ao limitar os gastos dos três poderes, a LRF acabou com a cultura de deixar o prejuízo para o próximo que vier;, acrescentou o ministro.
Sem poder contar com o socorro de senadores e deputados, os gestores públicos brasileiros têm que se preocupar em alcançar as metas estabelecidas para o equilíbrio de suas contas e para os limites de gastos com pessoal, sob pena de serem cassados ou presos. Isso porque, para fazer valer a LRF, existem penas severas para os administradores públicos, entre elas a cassação do mandato e a prisão do gestor. Com isso, a lei ;pegou; e hoje é modelo para outras ;leis de responsabilidade; na área de educação, sanitária, social que tramitam no Congresso.
Caráter educativo
Assim como as multas por si só não resolvem os problemas de trânsito, a lei fiscal também não se sustenta somente nas sanções. ;Mais importante que punir, a LRF estabelece regras que evitam que os problemas aumentem, como, por exemplo, proibir novos empréstimos;, explica o economista José Roberto Afonso, que participou da elaboração da lei. ;Além disso, as regras legais induzem a redução dos excessos cometidos, como o aumento dos gastos e da dívida, num período razoável suficiente para a melhoria da receita;, assinala.
Para José Roberto, o caráter educativo da lei mostra uma diferença importante entre a LRF e as regras que estabeleceram a convergência fiscal para a união monetária europeia. Os países da zona do euro têm de cumprir metas permanentes que limitem o deficit público (resultado negativo entre as receitas e despesas) a um valor correspondente a 3% do Produto Interno Bruto (PIB), total de riquezas geradas pela economia do país em um ano. A outra meta exige que o total da dívida pública não ultrapasse os 70% do PIB do país. Com deficit de 3,3% e dívida equivalente a 42,4% do PIB, o Brasil estaria, na prática, enquadrado na regra, situação bem diferente da Itália, Grécia e Portugal (veja mais no quadro).
No Brasil, as metas fixadas para governadores e prefeitos são móveis e valem para um período de três anos, fixadas anualmente pelo Congresso Nacional na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Isso permite entender o que levou ao descumprimento das regras e estabelecer metas mais compatíveis com o ciclo econômico. ;As metas fiscais europeias foram descumpridas há anos e não apenas pelos países que estão no epicentro da crise, porque as sanções eram fracas ou inaplicáveis. E eram suspensas quando chegaram aos ricos;, explica o economista.
1 - Coisas por fazer
A lei que pôs um freio na gastança de estados e municípios ainda não limita o próprio governo federal, que, livre de amarras, mantém a prática de fazer despesas acima dos recursos que arrecada. Tanto que na sexta-feira o Banco Central anunciou o pior resultado das contas públicas para os meses de março desde 2001, quando a série história foi iniciada. E agora o governo corre o risco até de não cumprir a meta de superavit primário prometida para 2010.
Em um país onde obras públicas viram ruínas antes de serem inauguradas, leis também são promulgadas incompletas. Com a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), em vigência há 10 anos, não foi diferente. Por falta de regulamentação, as regras que ajudaram a estancar o endividamento de estados e municípios ainda não valem para o Governo Federal. Isso porque o Congresso Nacional não aprovou três propostas enviadas pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso.
Em tramitação desde 2000, os projetos de lei criam o Conselho de Gestão Fiscal, fixam o limite para o total da dívida federal e estabelecem um teto para a dívida mobiliária federal, aquela feita por meio da emissão de títulos que são vendidos no mercado financeiro. O economista José Roberto Afonso aponta a disputa política como uma das causas para a falta de regulamentação da LRF. ;Esses projetos, que podem ser aprimorados, não deveriam ser deixados de lado, só porque foram propostos por este ou aquele governo;, afirma.
Para a pesquisadora Cristiane Kerches da Silva Leite, professora de Análise de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo, estudiosa da LRF, se o Conselho de Gestão tivesse sido regulamentado e implementado, normas e padrões mais simples para os pequenos municípios estariam sendo criadas. Também seria possível padronizar as prestações de contas e dos relatórios e demonstrativos de gestão fiscal. Com isso, ficaria mais fácil para os municípios cumprirem as exigências e para os Tribunais de Contas verificarem o cumprimento dos limites.
Unanimidade
Se a regulamentação não sai, pelo menos a LRF virou uma unanimidade no campo da política. O Partido dos Trabalhadores, que votou contra, hoje defende. E até agora, a única mudança foi aprovada no exato dia do seu 9; aniversário (em 5/5/2009), pela Câmara dos Deputados, por 389 votos a zero. Conhecido como ;Projeto Transparência;, a lei reforça e amplia a transparência fiscal e determina a disponibilização, em tempo real, de informações pormenorizadas sobre a execução orçamentária e financeira de cada estado.
Na última segunda-feira, o governo Lula aprovou mudança na Lei de Ajuste Fiscal que afastou a punição para governadores e prefeitos que não cumprirem os limites impostos para o desempenho das contas públicas. A regra chegou a ser entendida como uma flexibilização da LRF. No entanto, o secretário do Tesouro Nacional, Arno Augustin, afirmou que apenas se estendeu à lei que estabeleceu o acordo da dívida dos estados a regra prevista na própria LRF de não se aplicar penalidades quando o descumprimento ocorra por causa do baixo crescimento econômico.