postado em 16/05/2010 10:55
O boom imobiliário, que tirou milhares de brasileiros do aluguel nos últimos anos, começa a cobrar a fatura. O valor de mercado da maioria das construtoras listadas na Bolsa de Valores de São Paulo (BM) caiu entre 2008 e 2009 e suas dívidas cresceram. Com as margens de lucro encolhidas pelos custos elevados de insumos e da mão de obra, o endividamento das empresas de capital aberto somou R$ 17 bilhões no último ano, resultado 261,7% maior do que verificado em 2007, de R$ 4,7 bilhões. Diante desse quadro, as companhias ficaram sem espaço para erros em suas projeções financeiras. Problemas de gestão deixaram pequenas e médias empreiteiras na corda bamba e os consumidores correm o risco de o sonho da casa própria virar pesadelo.Ainda que o quadro não seja motivo para alarde, é preciso atenção. No desejo de acompanhar o ritmo de oferta de crédito ; R$ 50 bilhões em 2009, somando recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e da caderneta de poupança ;, algumas construtoras de menor porte quebraram recentemente, por expandirem seus negócios sem critérios. Com muitos empreendimentos em curso e mal planejados, ficaram sem capital de giro suficiente para manter a fluxo das obras e entregar os imóveis no cronograma acertado com a clientela.
O que preocupa os analistas é que a situação pode se agravar, pois o desequilíbrio financeiro tende a ser potencializado pelo aumento crescente dos custos de mão de obra e de materiais. Nos últimos 12 meses, o Índice Nacional do Custo da Construção (INCC), calculado pela Fundação Getulio Vargas, acumulou alta de 5,35%. Isoladamente, os trabalhadores ficaram 9,79% mais caros. Para tentar contornar esses custos maiores, as empresas menos responsáveis podem acabar ferindo a legislação e metendo os pés pelas mãos. O prejuízo, é claro, ficará com os consumidores, que serão pegos de surpresa quando os prazos de entrega não forem cumpridos. Quando isso acontecer, os donos dessas companhias, como de praxe, terão desaparecido.
Esse enredo de desequilíbrio atingiu em cheio a J. Martini Construtora e Incorporadora. Desde 2006, ela amarga dezenas de processos judiciais por parte de fornecedores, empregados e clientes em cinco empreendimentos ; todos sem memorial de incorporação registrado ; em Águas Claras, região administrativa do Distrito Federal, um dos maiores canteiros de obras do Brasil. Um ex-funcionário da empresa relata os problemas resultantes da má gestão. ;Na obra Verdes Brasil, faltava de tudo. E um dia, não tinha energia. No outro, faltava água. Até material de construção meu patrão teve de pegar emprestado com outras empresas. Ele teve que vender um carro para colocar dinheiro na obra;, conta.
Segundo levantamento da consultoria Dextron, em média, as construtoras registraram, em 2009, dívidas que corresponderam a 40% do patrimônio. Individualmente, algumas chegaram a comprometer 100% de tudo o que têm.
"Nos últimos cinco anos, houve alta de 50% acima da inflação nos salários dos engenheiros"
Manuel Rossitto, diretor do Sinicesp
Manuel Rossitto, diretor do Sinicesp
O número
Atenção
Endividamento das companhias com ações em bolsas chega a
R$ 17 bilhões
e acende sinal de alerta
Salários disparam
Os custos de mão de obra têm tido o maior peso na conta da construção civil. Em 12 meses, os salários dos trabalhadores tiveram aumento médio de 9,79%, segundo o Índice de Custos da Construção Civil (INCC), da Fundação Getulio Vargas. No mesmo período, os materiais foram reajustados em 0,4% e os serviços, em 6,28%. Na falta de funcionários com boa qualificação, os salários inflacionam.
;O setor precisa de 160 mil pessoas para atender a toda a demanda;, explica o presidente da Associação Brasileira da Indústria de Materiais de Construção (Abramat), Melvyn Fox. Entre janeiro de 2009 e fevereiro de 2010, os postos mais demandados foram os de servente de obras (153.204), de pedreiro (20.230) e de carpinteiros (4.679).
Na média brasileira, os salários pagos cresceram 9,8% no ano passado, índice bem acima da inflação do mesmo período. A região com maior crescimento foi a Sul (12,19%), seguida da Norte (12,08%) e da Nordeste (11,59%). Nas negociações de ajuste salarial realizadas em 2009, 94% das categorias registraram ganhos reais, de acordo com o Dieese.
Os profissionais especializados como engenheiros foram os que mais ganharam. ;Nos últimos cinco anos, houve alta de 50% acima da inflação nos salários dos engenheiros;, garante Manuel Rossitto, diretor do Sindicato da Construção Pesada de São Paulo (Sinicesp). Essa foi a única forma encontrada pelas empresas para reter profissionais capacitados, cada vez mais escassos no mercado. (LN)
J. Martini deixa clientes na mão
O descontrole na gestão financeira da J. Martini Construtora e Incorporadora afeta mais de mil consumidores em Brasília. Com cinco empreendimentos ; Verdes Brasil, Angra dos Reis, Blue Sky, Monte Solaro e Terras Brasil ;, todos em Águas Claras, no Distrito Federal, a empresa acumula dezenas de ações na Justiça comum com compradores e fornecedores, e na trabalhista, com antigos funcionários.
Wládmir Lopes, 39 anos, é um dos nomes que constam nas ações contra a companhia. Ele foi um dos primeiros compradores do Blue Sky e pagou a entrada de seu imóvel à vista, em 2006, no valor de R$ 20 mil. ;Comprei um apartamento na planta de uma construtora desconhecida. Eles só tinham um prédio pronto e ainda não haviam entregado nada. Nunca mais faço isso;, lamenta Lopes.
Tão indignado quanto ele, André Luiz dos Santos, 29, e José Odair Soares do Nascimento, 36, também buscam na Justiça uma solução para o problema. O trio tenta reunir todos os compradores para ter posse do prédio e dar continuidade à obra. ;A nossa esperança é que o restante dos moradores venha para a associação. Eu tive que adiar meu casamento por conta desse problema. Um monte de gente teve que mudar a vida por conta da J. Martini;, queixa-se André Luiz.
No condomínio Verdes Brasil, a associação de proprietários levou o caso à Procuradoria de Defesa do Consumidor (Prodecon) que, em 10 meses, firmou dois termos de ajustamento de conduta tentando resolver o problema ; o último, no mês passado. ;A primeira questão a ser resolvida é a elaboração do memorial de incorporação. Sem ele, nem há a garantia de propriedade para quem comprou unidades nesse prédio;, explica o procurador de Justiça Trajano Sousa de Mello.
Em abril, ficou acertada a transferência do terreno aos futuros moradores, que esperam para a próxima semana a formalização do memorial em cartório. O Correio tentou falar com dirigentes da J.Martini, mas ninguém foi encontrado.(LN e VM)
Clube dos bilionários
Com mais capital para investir e fazer frente aos elevados níveis de endividamento, tem aumentado a quantidade de construtoras com faturamento bilionário. Até o fim de 2009, eram oito empresas a formar esse grupo poderoso. Em 2006, apenas a gigante Cyrela contabilizava receita desse tamanho. No ano passado, passaram a compor a lista a Gafisa, a PDG Realty, a Brookfield, a MRV, a Agre, a Rossi e a Even. Firmas que, juntas, somavam, até o ano passado, patrimônio líquido de R$ 16,9 bilhões. Os dados foram levantados pela consultoria Dextron e constam no balanço divulgado pelas companhias.
O setor da construção foi impulsionado por uma série de operações de joint-venture, fusões, aquisições e contratos de parceria. Sendo 78 apenas entre 2006 e 2009. A abertura de capital nos últimos anos também foi um combustível a mais para que elas chegassem a um faturamento de cifras bilionárias. ;As fusões e parcerias foram uma boa sacada dessas empresas. Para algumas, impediu a falência, mas, para a maioria, serviu como forma de entrar em novos mercados correndo poucos riscos;, argumenta Maurício Kerbauy, consultor da Dextron.
Enquanto a maioria das companhias perdeu patrimônio, margem de lucro e valor de mercado, as que apostaram na nova classe C registraram ganhos recordes, mesmo durante a crise. ;As empresas que tiveram maior valorização no mercado foram as que atuam na baixa renda. A Cyrela, por exemplo, comprou a Tenda, que atuava mais com a classe C, uma parcela da população que hoje é importantíssima para qualquer empresa;, explica Kerbauy.
Mas outros desafios estão colocados. ;Precisamos acompanhar como o empresário brasileiro vai lidar com a situação, de forte crescimento econômico e estabilidade, pois, no Brasil, sempre se gerenciou crises;, observa o consultor. Mantendo o ritmo de expansão atual, de 40% de aumento das receitas entre 2007 e 2009, a Tecnisa será a próxima a entrar nesse clube bilionário. No último ano, registrou faturamento de R$ 700 milhões. (VM)