postado em 22/11/2010 08:55
Possivelmente com opiniões muito mais ouvidas hoje do que quando foi ministro da Fazenda nos fins dos anos 1980, Maílson da Nóbrega decidiu contar sua vida em livro. Sua autobiografia chega às livrarias com direito a detalhes sórdidos de tensas reuniões no Palácio do Planalto. Além do feijão com arroz busca dissecar muitos episódios que até já chegaram a ser divulgados, mas sem a precisão de documentos históricos. Entre esses registros, chama atenção a discussão sobre a renúncia do então presidente José Sarney, chefe de um governo mergulhado na hiperinflação. Mas a autobiografia de Maílson conta também como o garoto de infância pobre em Cruz do Espírito Santo, na Paraíba, tornou-se ministro de Estado.Com bagagem para avaliar a atuação de seus sucessores na Fazenda, Maílson não poupa críticas ao ministro Guido Mantega e equipe, com destaque, ao Tesouro Nacional. A seu ver, o que estão fazendo, ao adotarem a contabilidade criativa, é algo que beira o inacreditável. O ex-ministro sustenta ainda que, por conta desses e de outros expedientes, o Brasil vive riscos de retrocessos na área econômica. Todas as esperanças de retomada do bom senso fiscal na gestão da presidente eleita, Dilma Rousseff, recaem na presença do ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci em um posto importante do governo. ;Todos têm a percepção de que a Dilma reverterá isso, porque o Palocci tem plena noção das barbaridades que o Ministério da Fazenda está cometendo;, diz.
O ex-ministro, que ficou marcado pela ;política do feijão com arroz;, também critica a baixa eficácia das medidas adotadas para enfrentar a supervalorização do real. Na sua visão, embora necessário, o aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) para investidores estrangeiros não passa de um paliativo. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista que Maílson concedeu ao Correio.
O senhor passou pelo governo em um dos piores momentos da história. Se não consertou os erros do passado, buscou ao menos não atrapalhar. Hoje, olhando para trás, faria algo diferente?
Não. Não faria porque, ao contrário do que muita gente imagina, o ministro da Fazenda não tem o poder de dar o rumo ao país, ao governo. Ele é uma peça, normalmente relevante, mas ele não é o condutor. O condutor é o presidente. O condutor é o sistema. E o ministro tem que responder a esse ambiente, tem que seguir os incentivos que a realidade lhe oferece. Naquelas circunstâncias, nem o presidente da República, José Sarney, tinha condições de ser o condutor de um processo que fosse melhor do que vinha, porque ele era um presidente de transição. O poder caiu no colo dele em condições muito difíceis e no momento em que a sociedade tinha expectativas de melhoria de suas condições de vida, porque os políticos tinham vendido uma história de que a democracia era algo que resolveria os problemas do país apenas por ser democracia. Acho que, talvez se voltasse no tempo, faria as mesmas coisas de maneira melhor. Talvez eu tivesse evitado muitos erros, porque, no ambiente de incertezas, de instabilidade, como aquele em que a gente vivia, o potencial de erros amplia-se muito. Mas acho que, no geral, não seria diferente do que a gente fez.
Pela primeira vez, é contada em detalhes a reunião que discutiu a renúncia do então presidente Sarney. O Brasil não poderia ter sabido desses pormenores antes?
Esse episódio já chegou à imprensa em duas ou três ocasiões. Acho que desta vez eu o conto com mais detalhes. O que eu faço agora é contar não só a reunião, as tensões que a permearam, mas as suas origens.
Sua versão é mais completa?
A meu ver, sim. Primeiro, porque eu sou o autor da ideia. Segundo, porque discuti a ideia com o próprio presidente Sarney, discuti a ideia com três outros ministros, Ronaldo Costa Couto (Gabinete Civil), Ivan Mendes (Serviço Nacional de Informações) e João Batista de Abreu (Planejamento). Eu e o João Batista apresentamos a ideia ao presidente e participamos da reunião, que se deu em duas etapas. Na primeira, fizemos uma longa reunião com o presidente, eu, o João Batista, o Ronaldo e o Ivan, para fazermos uma avaliação, se a gente levaria a ideia a um grupo maior que nos esperava na outra sala, onde estavam mais seis ministros. Tenho uma ata dessa reunião. É uma das poucas atas de reuniões secretas que eu guardei. E, na verdade, tinha que esperar o tempo para divulgar, porque ela teve importância, embora não tinha tido consequências. Certos acontecimentos precisam do tempo, do amadurecimento, da criação de novas condições para que possam ser recebidos apenas como registro da história e não como capazes de interferir no dia a dia do governo, do país.
O Brasil, segundo seus artigos, avançou sob Lula e tem chances de melhorar com Dilma. Há possibilidade de retrocessos?
Eu costumo dizer que o Brasil cruzou o Rubicon em duas áreas fundamentais para o seu futuro: primeira, a democracia; segunda, a estabilidade econômica. Os dois ainda muito frágeis, com muitos defeitos, com muito a fazer. A nossa democracia é jovem, ainda tem muita corrupção. Os partidos políticos, poucos são dignos desse nome. Uma parte considerável da classe política se move pelo fisiologismo, pelo interesse menor, mas a democracia como valor se incorporou ao modo de pensar dos brasileiros. No caso da economia, os riscos de retrocessos são maiores, porque os estragos podem ser feitos. O grande desafio da presidente eleita será reverter a grave deterioração nas contas do governo, não só do lado das despesas, com a ampliação inacreditável dos gastos correntes, mas na destruição sistemática de princípios, normas e códigos que foram construídos durante os últimos 20 e tantos anos.
O senhor fala das manobras contábeis recentes?
Não só das manobras. São duas ordens de destruição. A primeira, o uso da dívida pública nos moldes da época do regime militar, em que é possível ampliar o endividamento do Tesouro para conceder subsídios sem autorização legislativa, sem transparência, sem previsibilidade e com sua concessão a cargos de burocratas. Isso é um grande retrocesso. Apesar de várias pessoas escreverem sobre isso, o ministro da Fazenda trata os seus críticos de maneira stalinista. Para ele, o melhor é desmoralizar o crítico. Ele, dia desses, certamente referindo-se a mim, disse que isso era gente com inveja. Gente que viu a hiperinflação e que agora estava com inveja. Eu não tenho inveja dele, porque eu não faria essas coisas. Esses expedientes, de contabilidade criativa, para esconder a deterioração fiscal, além de ser condenáveis, têm um elemento inacreditável, que é o de zombar da inteligência alheia. É imaginar que os analistas de fora do governo que acompanham isso aceitariam a tal contabilidade criativa, querendo mostrar o cumprimento de uma meta sem terem cumprido.
Parte dessa equipe está deixando o governo, como o secretário do Tesouro, Arno Augustin. Mas Guido Mantega ficará no cargo.
O que eu ouço é que ninguém mais olha para as contas do Tesouro. A STN (Secretaria do Tesouro Nacional) divulga, as pessoas registram, mas ninguém analisa mais a tendência das contas públicas com os números do Tesouro. Cada um está construindo seu próprio banco de dados, seus parâmetros. Eles (do Tesouro) jogaram fora isso. Todos têm uma percepção de que a Dilma vai reverter isso, porque Antonio Palocci, que é provavelmente a figura mais sensata do PT no campo econômico, terá uma posição importante no governo. O Palocci tem plena noção das barbaridades que o Ministério da Fazenda está cometendo.
A questão cambial tem sido uma tormenta para o Brasil. O governo agiu certo ao taxar o capital externo de curto prazo com o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF)?
O IOF foi uma questão justificável, eu diria necessária, mas pouco eficaz. Primeiro, porque a força da valorização do real deriva de condições estruturais, contra as quais o país não tem ação, que é a desvalorização da moeda norte-americana. A desvalorização do dólar decorre, em primeiro lugar, dos movimentos de expansão de liquidez, e, em segundo lugar, da percepção de que a economia dos Estados Unidos levará muitos anos para se recuperar. Isso sinaliza taxa de juro muito baixa por um longo período e produz uma desvalorização da moeda. Os investidores com maior capacidade de avaliar e assumir riscos saem em busca de alternativas de remuneração melhor. Daí, eles estão indo para o Brasil, para a Índia, para a China. Esse é um problema sério, ninguém pode se contentar com ele, mas se o Brasil tentar reverter esse processo sem ter armas terminará fazendo bobagem.
Que tipo de armas seriam essas?
Veja só: a valorização cambial no Brasil é uma tendência inexorável. Não é para chegar a R$ 1 por US$ 1, não é isso. Mas dificilmente o Brasil terá moeda desvalorizada nos próximos anos, a menos que fracassemos. A competitividade dos produtos brasileiros será obtida não pela taxa de câmbio, mas por mudanças estruturais que reduzam os custos sistêmicos que atormentam o empresário brasileiro, geram o chamado custo Brasil. Para você ter uma ideia disso, as empresas brasileiras gastam 2.600 horas por ano para cumprir obrigações tributárias. Os nossos vizinhos, mais pobres do que nós, gastam 200 e poucas horas. Os países ricos gastam 100 horas. Então, o sistema tributário brasileiro hoje é, provavelmente, a maior fonte de desperdícios, de custos e de incertezas que diminuem a competitividade dos produtos nacionais.
Medidas estruturais serão tomadas pela presidente eleita ou o país tende a caminhar para medidas pontuais, como a quarentena para o capital especulativo?
Vou torcer para que ela (Dilma Rousseff) consiga (tomar as medidas estruturais), embora a agenda seja tão complexa, que dificilmente ela cumprirá as promessas que vez durante a campanha. Dificilmente, teremos um novo sistema tributário e ela não tocará na questão da legislação trabalhista. Acho que tem que dar um crédito de confiança.