Rosana Hessel
postado em 25/02/2017 07:15
Mestre em administração pública pela Fundação Getulio Vargas (FGV), o economista paulista Felipe Salto sugere ao governo passar um pente fino nos subsídios e desonerações concedidos pela União. Ele lembra que, na atual conjuntura, não há espaço para aumento da carga de impostos, que já é elevada, e diz que a reforma tributária que o Executivo pretende fazer, se ocorrer, não deverá ser ampla. ;Passou da hora de (o governo) rever as desonerações;, afirma.Salto está à frente da Instituição Fiscal Independente (IFI), criada pelo Senado em novembro passado. A entidade replica órgãos semelhantes que surgiram em mais de 30 países após a crise financeira global de 2008 para avaliar as finanças públicas e está começando a elaborar os primeiros estudos sobre as contas do governo. Em uma segunda etapa, a IFI tem planos de analisar os impactos das políticas públicas na economia.
O economista lembra que o projeto de lei que cria o Regime de Recuperação Fiscal dos estados, por exemplo, já obriga aqueles que aderirem ao regime a suspenderem subsídios. Pelas estimativas da IFI, com base em dados da Receita Federal, apenas a conta de renúncias da União chegará a R$ 284,8 bilhões neste ano, 6,7% acima dos R$ 267 bilhões estimados para 2016, o equivalente a 4,2% do Produto Interno Bruto (PIB).
Salto conta que, após divulgação do primeiro relatório da IFI, foi conversar com o secretário de Acompanhamento Econômico da Fazenda, Mansueto Almeida. Em declarações à imprensa, o secretário considerou que as previsões da IFI ;eram muito pessimistas;, o que provocou comentários na Esplanada dos Ministérios. No ano passado, Salto e Almeida escreveram um livro intitulado Finanças públicas: da contabilidade criativa ao resgate da credibilidade. ;Somos amigos, fui fazer uma visita espontânea;, diz o diretor da IFI.
O cenário traçado por Salto é preocupante. Mesmo considerando a aplicação integral da Emenda 95, que limita o gasto público pela inflação, a dívida pública bruta continuará subindo e chegará em 84,3% do PIB em 2021 devido à sequência de rombos fiscais que continuarão sendo registrados até a próxima década. Neste ano, as estimativas da IFI são de um deficit primário de R$ 182 bilhões para todo o setor público, acima do saldo negativo de R$ 143,1 bilhões, previsto na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Pelas contas de Salto e sua equipe, o governo precisará fazer um corte de R$ 38,9 bilhões nos gastos para cumprir a meta deste ano. A seguir, trechos da entrevista concedida por Salto ao Correio:
As previsões da IFI ficaram muito abaixo das feitas pelo governo e parece que o Ministério da Fazenda não gostou. Qual foi o motivo?
Eles disseram que a gente está muito pessimista. Eles acham que, quando a economia voltar a crescer, a receita vai ter uma taxa de expansão superior à do PIB. Nós achamos que serão necessários uns dois ou quatro anos para que isso ocorra.
Como será o trabalho da IFI?
Vamos ter relatórios periódicos e estudos sem periodicidade definida sobre contas públicas. O principal é o Relatório de Acompanhamento Fiscal (RAF), que divulgamos no início do mês. Ele será mensal. O próximo, que vai sair depois do carnaval, vai ter uma análise do efeito da reforma da Previdência nas contas públicas. Sem mudanças na Previdência, a PEC do Teto não para em pé. Além disso, vamos ter estudos especiais, acompanhando o que as outras IFIs no mundo fazem. Estamos também preparando um estudo sobre reservas, revendo os critérios internacionais para olhar o nível adequado para cada país e comparar com o Brasil. Não vamos recomendar nenhuma ação, mas dar informações para termos um debate mais qualificado sobre isso.
Qual é o custo dessas reservas?
O país tem US$ 370 bilhões em moeda estrangeira. Vamos detalhar melhor os custos em março, quando sair o estudo. É um seguro, mas será que não dá para não ser tão oneroso? O economista Edmar Bacha (um dos pais do Plano Real), que será nomeado como um dos cinco conselheiros da IFI, escreveu um artigo, há algum tempo, dizendo que é má ideia vender reservas para gastar, mas é uma boa ideia vender reservas para reduzir o endividamento. Para acumular as reservas, o Brasil fez dívida, e cara. Essa é uma discussão que precisa ser feita.
As projeções da IFI apontam um crescimento do PIB neste ano abaixo da mediana do mercado, de 0,48%...
O governo ainda trabalha com 1,6%, um parâmetro bem mais alto do que a média do mercado. Em março, a projeção deve ser revista para 1%. Mas a previsão de receitas da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) está baseada em 1,6%. Se esse número não for calibrado, não será possível cumprir a meta fiscal. A meta do setor público é de um deficit primário de R$ 143,1 bilhões, mas, pelas nossas contas, o rombo será maior, de R$ 182 bilhões, ou 2,8% do PIB. Estamos prevendo crescimento de 0,46%, mas tem economistas estimando PIB negativo. Não estamos tão pessimistas assim. Mas ainda vamos ver a dívida pública crescer por vários anos.
A devolução de R$ 100 bilhões feita pelo BNDES para o Tesouro Nacional ajudou a reduzir a dívida bruta de 70,5% do PIB, em novembro, para 69,5% em dezembro. Mas, em janeiro, ela já voltou a subir para 69,7%.
Essa taxa será maior porque as estimativas do PIB ainda serão revistas. O Bano Central usa uma série em que o PIB nominal é de R$ 6,3 trilhões, mas, pelas nossas estimativas, o PIB de 2016, que será divulgado em março, ficará em R$ 6,18 trilhões, o que fará a dívida bruta subir para 71%. E, em 2017, ela irá a 76,9%. A variação é grande porque ainda haverá um deficit primário maior do que o previsto neste ano, de R$ 182 bilhões. Até 2021, a dívida bruta vai chegar a 84,3% do PIB.
Como explicar esse cenário tão ruim?
O estrago nos últimos anos nas contas públicas foi tão grande, que o país chegou ao fundo do poço, do qual, agora, vai começar a sair devagarzinho. Não é da noite para o dia que a gente vai fazer o ajuste fiscal. Ele vai demandar tempo e vai ser custoso para toda a sociedade. Vai demorar para a emenda do teto surtir efeito. Isso depende de quanto o país vai crescer. E esse ciclo de crescimento não vai ser igual ao da época da bonança externa, porque não vai ter a ajuda do boom das commodities. A boa noticia é que, sem a PEC do teto, a chance de o endividamento ficar acima de 100% do PIB em 2021 era altíssima. Com o teto, essa probabilidade caiu.
Por que a dívida ainda tende a crescer muito nos próximos anos mesmo com a PEC do Teto? É por causa dos juros?
Por várias razões: a falta de superavit primário, o patamar elevado da própria dívida, a falta de crescimento do PIB e o juro real alto. O país vai crescer pouco por muito tempo. A retração econômica acumulada em 2015 e 2016 é de 7,2%, o pior biênio da série histórica do IBGE, ainda mais negativo do que o de 1930 e 1931, após a crise de 1929. A economia vai crescer devagar e, como o deficit primário é elevado, chegando a R$ 182 bilhões neste ano, o juro real também é muito alto. Como o patamar de endividamento herdado do governo anterior é muito grande para os nossos padrões, a sustentabilidade da dívida está comprometida por muito tempo. Em 2021, se chegarmos a um superavit primário de 1,2% do PIB e a um juro real em torno de 3,5%, dá para ter estabilidade. Mas o problema é que vai ser muito difícil gerar esse superavit.
Por quê?
Daqui a quatro anos, a nossa projeção de resultado primário até 2021 ainda é de deficit de 1,18% do PIB. Mas, se o governo conseguir fazer uma política fiscal mais austera do que a que está no cenário previsto, que é estritamente a aplicação da PEC do Teto, se o crescimento econômico for um pouco maior, e se o juro real cair um pouco mais, dá para antecipar o equilíbrio da dívida pública. Mas se for o cenário base que a gente está prevendo, a dívida pública continuará crescente.
Isso já pode beirar a insolvência?
Ainda não. É preciso tomar cuidado. Países desenvolvidos podem ter dívidas de 200% do PIB porque têm taxa real de juro negativa, são bons pagadores e o mundo quer financiá-los. Já o Brasil trava quando o percentual chega a 50% ou a 60% porque a taxa real de juros, que é consequência de uma política fiscal ruim é muito alta. Por isso, a dívida é crescente. Mas a situação ainda não é de insolvência porque o governo ainda consegue emitir títulos públicos para financiar a dívida.
Mas não é ruim uma dívida tão alta e com juros ainda elevados?
Só existem três formas de o governo financiar as ações do setor público: emissão de moeda, que gera inflação; aumento de carga tributária, que gera peso morto, ineficiência e aumenta a informalidade; ou dívida pública, que tem um custo, que é o juro. A primeira é totalmente refutada, porque a sociedade não quer mais inflação. A segunda também é ruim porque o país já tem uma carga tributária alta que não condiz com a renda per capita. Sobra a dívida. Mas, se esse canal ficar comprometido, não há mais como financiar as políticas públicas. Logo, criar as condições para que o país possa fazer dívida é essencial para financiar saúde, educação, segurança. A política fiscal é a base para o crescimento econômico e para o estado poder parar em pé.
O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, está com o discurso de que a inflação está recuando, juros caindo... Ele aposta em crescimento ainda no primeiro trimestre ou semestre. Não é otimismo demais, que pode acabar gerando frustração?
O governo sempre é mais otimista, e não dá para criticá-lo por isso. Não acredito que haverá frustração como no passado. O que aconteceu é que na era da nova matriz econômica, do governo anterior, eles ignoraram a necessidade de ter compromisso com os números. Inflaram o orçamento na onda de mostrar que ia ter um resultado bom dessa nova matriz. O novo governo também tem problemas na área fiscal, mas está agindo corretamente, dando alguma racionalidade na área dos números.
Se os juros começarem a cair muito, qual é o impacto na dívida pública?
Nas nossas contas, cada ponto percentual de queda nos juros implica uma redução de R$ 28 bilhões na dívida anualizada. É uma conta conservadora. Se olharmos para a dívida total, que está em R$ 4,4 trilhões, 1% seria R$ 44 bilhões. Mas o efeito não é imediato e há diferença do impacto nos títulos com juros pré-fixados e nos pós-fixados.
Meirelles fala muito que os indicadores antecedentes estão melhorando, como venda de papel ondulado, pedágio de caminhões nas estradas....
Só que isso não vai resolver, porque o impacto do PIB na receita do governo é muito pequeno. De apenas 4%.
O que pode ajudar a melhorar a receita do governo para reduzir o rombo fiscal?
Passou da hora de rever as desonerações tributárias. O gasto total, em 2017, será de R$ 284,5 bilhões. Essa soma inclui a Zona Franca, o Simples Nacional, todos os regimes. Em 2013, foram R$ 223,3 bilhões. O Simples e a Zona Franca são os maiores gastos nesse sentido. E essa é uma área em que a gente quer aprofundar os estudos. Esse tema tributário é crucial.
E o que precisa ser feito?
O governo precisa prestar contas. Quanto o Simples gera de emprego e quanto tira de emprego dos outros? Vale a pena pagar esse custo? Falta accountability, ou seja, a capacidade de dar resposta para a sociedade e não apenas jogar os dados na internet e achar que isso é transparência. O governo também precisa explicar por que decidiu gastar R$ 500 bilhões com o BNDES, aumentando a dívida em 10% do PIB. O governo precisa começar a avaliar as políticas públicas. A IFI não vai começar de cara a fazer isso, mas esse é um dos nossos objetivos em uma segunda etapa.
Você acredita que o governo conseguirá fazer uma reforma tributária? O presidente Temer tem evitado essas palavras e fala em simplificação tributária...
Não acho que vá ter reforma tributária tão cedo. Mas é preciso ter mais racionalidade e simplificação na área. O ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) tem 27 legislações diferentes e cada ente federativo define uma alíquota para um determinado produto. Além disso, tem as taxas interestaduais do ICMS, de 12% e 7%, que dão aos estados um poder arbitrário enorme para criar incentivos, o que aumenta a insegurança jurídica das empresas. Para piorar, o Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária), que era o órgão que decidia sobre o tema, perdeu importância. A crise federativa atual é muito maior do que aparenta. O Doing Business (pesquisa do Banco Mundial) mostra que o empresário brasileiro gasta mais de duas mil horas só para pagar impostos. É preciso mudar isso.
Recentemente, as agências de classificação de risco Standard;s e Fitch Ratings mantiveram a nota dos títulos soberanos do Brasil dois níveis abaixo do grau de investimento, com perspectiva negativa. Esse cenário com deficit primário constante e dívida crescente que a IFI prevê confirma essa decisão?
Ainda temos um cenário muito incerto. O governo está na direção correta, mas demanda tempo para os resultados começarem a aparecer. As agências de classificação de risco, como o nome diz, têm que determinar se o risco está aumentando ou diminuindo. Por isso, elas são mais cautelosas. É compreensível.
Você fala que a PEC do teto não fica em pé sem a reforma da Previdência. Qual é o cenário com o qual vocês estão trabalhando, pois, inevitavelmente, haverá mudança na proposta atual do governo, como a idade mínima?
A probabilidade de o projeto original passar existe, mas não é alta. A proposta é bastante ampla. O ideal seria aprovar integralmente, mas, mesmo que se aprove agora apenas a regra da idade mínima, seria um avanço impressionante e geraria um efeito importante para as contas fiscais. Sem uma mudança na Previdência, cumprir a regra do teto vai ser muito difícil.
Mas tem economistas e entidades dizendo que não há deficit na Previdência...
Economista que diz que não há deficit na Previdência deveria ter o diploma cassado. Não sabe fazer conta.