Economia

Programa mostra que fim da corrupção depende de mudança de hábito

Programa desenvolvido por alunos do CED 11 de Ceilândia mostra que, para combater mazelas como corrupção e desperdício de dinheiro público, é preciso revisar hábitos entranhados na cultura brasileira

Hamilton Ferrari, Letícia Cotta*
postado em 23/07/2018 06:00
Os estudantes Milena Medeiros, Ana Beatriz Marques, Marco Antônio Araújo e a professora Luciana Brito: ensinamentos que vão além dos muros da escolaAlém de desmistificar a gestão dos recursos públicos, a educação fiscal é fundamental para a revisão de práticas irregulares que estão entranhadas na cultura brasileira. O famoso ;jeitinho; é posto em xeque com os ensinamentos corretos de cidadania, de acordo com especialistas. Eles afirmam que pode não ser possível eliminar a corrupção e a sonegação de impostos no país, mas a mudança de comportamento pode ser intensificada a cada geração a partir do trabalho nas escolas.

Os estudantes do Centro Educacional 14 (CED 14) de Ceilândia perceberam que, com os inúmeros escândalos de desvio de dinheiro público e a falta de ética da própria sociedade, é necessário, antes de tudo, mudar o comportamento das pessoas. Por isso, no projeto Monitorando Minha Escola, os alunos reproduziram situações do cotidiano para reprender práticas irregulares dos próprios estudantes, professores e outras pessoas que passavam pelo colégio.

Três testes foram aplicados. Em um deles, a turma recebia doces e, logo após a saída para o intervalo, era feita a contagem de quantos papéis de embalagem eram encontrados no chão ou nas mesas. Também foi feita a venda de ;dindins; sem que houvesse funcionário da escola para cobrar o pagamento ; os alunos teriam que depositar o dinheiro numa caixa antes de levar o produto. Em outra avaliação, notas falsas de dinheiro foram jogadas no chão para observar se os jovens as devolveriam ao proprietário.

Como era esperado, a turma não se saiu bem, a princípio. Recém-formada no ensino médio, Ana Beatriz Marques, 17 anos, uma das idealizadoras do projeto, ressalta que muitos estudantes tiveram desempenho insatisfatório nos testes e, por isso, não estavam ;prontos; para reclamar de atitudes incorretas dos gestores. ;Não adianta criticar os políticos e fazer a mesma coisa no dia a dia. Nós quisemos mostrar a hipocrisia de muitos alunos, que se estende ao restante da população;, diz.

No teste do dinheiro abandonado, só uma criança devolveu a nota encontrada. A professora Luciana Brito, que acompanhou o desenvolvimento do projeto, destaca que avaliações também foram feitas com adultos, e que ;nenhum deles se apresentou para devolver; as cédulas.

Outro idealizador do projeto do CED 14, o estudante Marco Antônio Araújo, 17, acredita que há um deficit na educação brasileira para temas como honestidade, e que são necessárias medidas que incentivem o comportamento adequado dos alunos. A educação fiscal pode preencher essa lacuna. ;Com o projeto, nós também tentamos auxiliar nessa direção e combater a corrupção diária, enraizada nas nossas vidas, escolas, comunidades e família;, explica.

O aplicativo Monitorando Minha Escola ajudou a quantificar os resultados, já que cada estudante acompanhava e compartilhava os comportamentos dos colegas e professores. ;O aplicativo tem uma lista de todas as turmas do colégio, e à medida que pratica uma pequena infração, como furar fila, jogar lixo na sala, depredar o prédio, o aluno vai perdendo pontos;, explica a professora Luciana Brito, que acompanhou o desenvolvimento do projeto.

Efeito contágio


A docente diz que, por conta dessa autorregulação, a metodologia dos alunos não foi benéfica apenas para a turma avaliada, mas também para outras pessoas que frequentavam a escola, incluindo professores. Luciana conta que os irmãos dos participantes tentaram se adaptar às condutas para se tornarem ;cidadãos-modelo;. ;Os pequenos foram os mais empolgados;, afirma. ;Podemos ver que os alunos deixaram um legado para as próximas gerações;, acrescenta.

A aluna Milena Medeiros, 18, concorda. ;Vários alunos levaram o ensinamento para a vida, agindo corretamente depois de refletirem sobre nosso projeto;, diz. O secretário-geral da ONG Contas Abertas, Gil Castello Branco, ressalta que há um legado positivo de instituições que investem na educação fiscal e na cidadania. ;A população fica mais atenta, mais participativa, com muito mais vontade de acompanhar a gestão pública;, ressalta. ;Isso faz com que surjam no país pessoas com capacidade de lutar por uma sociedade ética e justa. Não é só apontar o dedo e dizer que as pessoas são corruptas. É preciso algo a mais para corrigir esses desvios.;

O sucesso do projeto foi obtido mesmo com o desestímulo de alguns alunos. ;As pessoas diziam que não ganharíamos nada com a iniciativa e, muitos professores, inclusive, só nos deram apoio quando a turma estava levando a coisa a sério;, ressalta Milena. A professora Luciana afirma que os incentivos à honestidade devem ser permanentes. ;Toda vez que muda o ano letivo, a gente recebe uma ;clientela; nova. Muitos alunos de sexto ou do primeiro ano, por exemplo, estão chegando de outra escola. Então, os que já estavam aqui continuam com o mesmo comportamento, e os novos precisam passar por esse recondicionamento;, explica.


Florescimento


José Marilson Martins Dantas, professor de economia da UnB, explica que o caminho é levar às pessoas o entendimento da função social do tributo, porque só assim haverá um florescimento de pessoas mais preparadas para questionar as ações do setor público. ;Esse é o grande ponto da educação fiscal, ter consciência e, ao mesmo tempo, saber que tudo é pago pela sociedade;, afirma. ;Muitas pessoas não entendem como o governo é financiado e, quando ganham essa consciência, tornam-se mais cuidadosas para eleger representantes.;

Castello Branco destaca que a mudança na sociedade não virá de imediato, mas frisa que o entendimento social do que é cidadania pode melhorar as práticas no setor público. ;É um processo de mudança cultural que não vai acontecer da noite para o dia. Do mais simples funcionário público ao presidente da República, todos são representantes da sociedade, estejam no Legislativo, no Executivo ou no Judiciário. Concursados, comissionados ou eleitos; No bom português, todos são empregados da sociedade;, diz.

*Estagiária supervisionada por Odail Figueiredo

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