Economia

Brasileiro quer fartura à mesa e não liga para desperdício, aponta estudo

Brasileiros consideram importante despensa cheia e mesa farta e pouco se preocupam com planejamento de refeições ou técnicas de preparo, além de pouco se engajarem no combate a perdas. Arroz e carne são os produtos que mais vão para o lixo

Simone Kafruni
postado em 16/09/2018 08:00 / atualizado em 08/10/2020 13:04

 

Tomates no chão da Ceasa

O gosto do brasileiro por fartura e sabor é o principal responsável pelo desperdício de alimentos na mesa, da qual carnes e arroz são os itens que mais saem direto para o lixo. É o que revela pesquisa inédita no país, realizada pelo projeto Diálogos Setoriais União Europeia — Brasil, divulgada com exclusividade pelo Correio. No último dia da série Do lixo à mesa, a reportagem mostra o quanto a mudança no comportamento do consumidor, as inovações tecnológicas e as iniciativas dos elos finais da cadeia alimentar são relevantes para o combate às perdas, que chegam a 1,3 bilhão de toneladas por ano em termos globais e podem saltar para 2,1 bilhões de toneladas em 2030 se nada for feito para estancar a sangria.

O analista da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Gustavo Porpino, líder do projeto sobre desperdício nos Diálogos Setoriais UE — Brasil, ressalta que 68% dos entrevistados consideram importante que a despensa esteja cheia. “É um traço cultural presente, principalmente, na classe média, em função da compra dos alimentos ser a prioridade do orçamento familiar”, avalia. A pesquisa também mostra que 59% não dão importância se houver comida demais. “O gosto pela fartura é característico da cultura latina e aumenta a propensão ao desperdício, ainda mais que as sobras são consideradas ‘comida dormida’ e descartadas”, assinala.

Saiba Mais

Mais de 60% das famílias priorizam uma grande compra mensal de alimentos. “Quando a compra farta é combinada ao baixo planejamento das refeições eleva-se a probabilidade de desperdício”, argumenta. O estudo aponta ainda uma contradição: apesar dos dados, os consumidores não admitem o desperdício. “Para mudarmos o comportamento das pessoas, é preciso conseguir envolvê-las como parte do problema”, resume Porpino.

Realizada em três fases, a pesquisa, inicialmente, apurou o comportamento dos consumidores nos pontos de venda, mercados e feiras livres. “As pessoas dizem que fazem compras uma vez por semana, enquanto estão levando alimentos para duas, três semanas. O brasileiro compra mais do que consome”, explica o pesquisador da Fundação Getulio Vargas (FGV) Carlos Eduardo Lourenço, especialista em comportamento do consumidor e analista do levantamento.

Na segunda parte da pesquisa, 1.764 pessoas foram questionadas sobre hábitos de preparo e alimentação, das quais 638 foram fiscalizadas durante uma semana. “Esse estudo corroborou que brasileiro não pode ter a menor sensação de que vai faltar comida. O desejo de fartura está alinhado à busca de sabor”, analisa Lourenço. Sem avaliar a geladeira ou a despensa, apenas o preparo e o consumo, a pesquisa revela que o arroz é o item mais desperdiçado: pelo menos 25% vai fora. “O que impressiona é que a carne, item agregado de maior valor, é tão desperdiçado quanto o arroz. E o comportamento não muda conforme classe social”, diz.

 

'Tenho receitas para aproveitar o produto até o fim. Das cascas do abacaxi, por exemplo, faço chá', diz Daniela Andrade, servidora pública 

Hábitos

Na terceira fase do trabalho, houve uma varredura na internet para mapear hábitos de consumo. “Nos surpreendeu que 75% do debate sobre combate às perdas é feito por organizações. As pessoas não se engajam. Há uma primeira onda de atuação de empresas e instituições e não reverbera entre as pessoas. Não viraliza”, lamenta. Na opinião do pesquisador, os brasileiros têm vergonha de falar sobre desperdício e serem recriminados. “Precisamos trazer à luz essa consciência”, afirma.

Quando confrontados, os consumidores garantem controlar as perdas. A dona de casa Fernanda Rocha, 35 anos, diz que mudou os hábitos e agora vai duas a três vezes no supermercado para comprar os alimentos mais perecíveis, como legumes. “Ou opto pelo picado e embalado que já vem em porções menores”, conta. A servidora pública Daniela Andrade, 49, afirma fazer compras pequenas, ir duas vezes por semana ao mercado e utilizar integralmente os alimentos. “Tenho receitas para aproveitar o produto até o fim. Das cascas do abacaxi, por exemplo, faço chá”, pontua.

O aproveitamento integral dos alimentos é o ponto central dos cursos de gastronomia, ressalta Rafael Dantas, chef e professor do Instituto de Gastronomia das Américas (IGA), rede de escolas com 118 unidades em seis países, presente no Brasil há 10 anos com 46 unidades. “O Brasil começa a experimentar agora a diferença entre a culinária e a gastronomia, que é um conceito mais amplo, que aplica metodologia à cozinha”, esclarece.

Adotar padrões, pesos e medidas e estudar os alimentos evitam perdas e desperdício, ensina o chef. “Quando o aluno chega até nós tem apenas um conhecimento empírico. Em seis meses, pode-se dizer que joga fora apenas a embalagem”, diz. Só no mise em place, processo de separação e preparação, e no corte apropriado das carnes, com uso das partes menos atrativas em caldos e molhos, é possível economizar 60% do que se perderia e desperdiçaria, garante Dantas, que é especialista em buffets. “Uma vez que o que foi exposto não pode sequer ser doado, é necessário fazer cálculos precisos para não ter desperdício muito grande, sobretudo em restaurantes a quilo”, orienta.

O gerenciamento e o controle garantiram uma redução no desperdício de 44%, em três meses, no restaurante Don Romano, que serve entre 150 e 400 refeições por dia. Sócia desde 2017 do estabelecimento, Mariana Miranda conta que a produção diária de lixo era de 120 quilos de sobras orgânicas. Depois de um trabalho minucioso de gestão, implementado pelo auxiliar administrativo Daniel Silva, o volume caiu para 80 quilos, que são doados para três pessoas que se revezam em recolher o descarte durante a semana para fazer compostagem. “Se alguém não vem buscar, temos um freezer específico para armazenar as sobras”, conta Silva.



Com 50 funcionários, Mariana ressalta que os alimentos que não foram expostos e ficaram armazenados na cozinha são aproveitados para alimentação da equipe no turno seguinte. “Vamos repondo aos poucos no buffet, para não ter desperdício. Além disso, treinamos todo o nosso pessoal para seguir à risca todo o projeto de gerenciamento”, acrescenta a empresária.

Jantar gera mais sobra que almoço

Além das perdas em casa, o consumidor precisa estar atento ao desperdício no prato dos restaurantes a quilo, porque, além de gastar mais dinheiro, esse tipo de sobra só serve para alimentar animais ou virar compostagem. Pesquisa realizada em restaurantes revela que os clientes desperdiçam mais do que o dobro de comida no jantar do que no almoço.

O diretor executivo da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel-DF), Fábio Estuqui, conta que o levantamento levou em conta 15.784 refeições, sendo 8.852 no almoço e 6.932 no jantar. Ao meio-dia, restaram 294 quilos, o equivalente a 33 gramas por refeição, enquanto, à noite, o desperdício por prato foi de 82 gramas. “No total da amostra, sobram 864 quilos ou 54,74 gramas por refeição. Calculamos essa perda entre 5,5% e 7,3%. Traduzindo em dinheiro, o prejuízo ficou entre R$ 73,8 mil e R$ 98 mil”, contabiliza Estuqui.

A associação busca conscientizar bares e restaurantes sobre a necessidade de planejamento e controle de estoque e de sobras, explica o executivo. “É preciso verificar o lixo, ficar de olho nos equipamentos porque muita perda ocorre por falha técnica, e definir a quantidade máxima e mínima para produtos estratégicos na gestão de estoque”, recomenda. 

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação