Economia

Artigo: Quanto vale uma decisão acertada?

Paulo Rabello de Castro*
postado em 19/03/2019 17:19

No seu clássico livro Por que as nações fracassam, os professores americanos Acemoglu e Robinson concluem ser a qualidade de atuação das instituições o elemento essencial a diferenciar as nações que avançam e as que afundam. Assegurar qualidade institucional é pensar nos três poderes de um Estado nacional, cada um acertando seu papel jus-político. O Brasil de hoje não requer apenas um conjunto corajoso de reformas, como a previdenciária. Exige bem mais. Para o país avançar, no conceito institucional, é crucial que cada Poder faça sua parte para propor reformas audaciosas (papel do Executivo), garantir os interesses efetivos da sociedade (tarefa especial do Legislativo) e velar pela segurança jurídica do Estado de Direito (missão essencial do Judiciário).

Dou um exemplo paralelo ao da reforma da Previdência, para mostrar a vastidão do desafio reformista: a questão da poupança e seus instrumentos de proteção. Poucos se atêm a isso. Uma reforma financeira, tão ampla quanto a que se cogita para a Previdência, seria requerida para o país avançar na formação e na proteção do valor acumulado das poupanças populares e dos créditos, inclusive os de origem judicial. Uma lei anacrônica, a de n; 8.177, de 1991, é a que ainda rege a remuneração de cadernetas, fundos de trabalhadores, como o FGTS, que são pecúlios populares envolvendo milhões de trabalhadores. A Lei n; 8.177, no seu art. 1;, criou a TR, Taxa Referencial de juros, na tentativa de desatrelar a economia do seu passado inflacionário. Era o estertor do Plano Collor. Tanto que essa norma foi chamada de ;lei de desindexação;. Resultado: a Taxa Referencial ; TR ; continua regulando a remuneração da poupança, do FGTS, dos contratos imobiliários e de tantos outros.

Embora projetada para ser um juro referencial, uma espécie de baliza para os demais juros no mercado ; tal como a Libor londrina ou a ;prime rate; americana ; a TR foi sendo adulterada em sua concepção inicial pela manipulação da fórmula a cargo do Banco Central. Ao introduzir um ;redutor; R completamente arbitrário no cálculo da TR, esse indicador perdeu a condição de medir o custo do dinheiro para frente, conforme baseado numa cesta de juros praticados pelos principais bancos, mas tampouco ganhou capacidade de medir qualquer inflação para trás. A TR virou o que é hoje, um índice desidratado, ;expurgado;, que nunca mediu inflação e sequer captura o custo básico do dinheiro, como em outros países. A TR é um Frankenstein da velha tecnocracia.

O paroxismo da TR bateu limite em setembro de 2017, quando, calculada pela esdrúxula fórmula do redutor R, passou a mostrar seguidos valores negativos, ou seja, denotar juro negativo mensal. Mas isso seria chocante se explicitado ao grande público. O Conselho Monetário, pela Resolução 3.530/2008, preparou o terreno para que o juro negativo fosse convertido em juro zero. Assim, desde setembro de 2017, os poupadores e os fundos sociais de trabalhadores têm convivido mensalmente com a TR zerada. Isso mesmo: a TR acumulada do ano de 2018 foi zero.

E por quê? Parece haver uma razão escondida que precisa vir à tona. Desde 2009, quando se promulgou a Lei no. 11.960, que previu o uso da TR como correção monetária de débitos públicos, as Fazendas Públicas vêm tentando empurrar esse falso indicador goela abaixo dos credores para fazer murchar o valor real dos seus débitos judiciais. Em 2017, a queda de braço com os credores chegou ao STF que, sabiamente, rechaçou a pretensão indevida ao declarar que ;TR não é índice de correção monetária;. Com isso, o Supremo protegeu o verdadeiro interesse social e velou pela segurança jurídica do país.

Inconformada, a Fazenda federal insistiu de novo, no Supremo, tentando emplacar a TR no período em que vigorou a norma inconstitucional. A insistência vem escorada nos lamentos de estados federados aflitos por suas finanças combalidas pela recessão. A nova postulação, de todo incabível, pretende, via aplicação da TR no período de 2009 a 2015, ;comer; fatia gigante da reposição do valor real dos créditos da sociedade contra as Fazendas Públicas. Seria um tombo de mais de 50% no valor real dos créditos devidos aos particulares.

Cabe a pergunta: estaria a União federal no mesmo aperto financeiro da maioria dos estados? A resposta é conhecida: claro que não. A União sequer usa a TR na atualização voluntária de seus débitos e, sim, o IPCA-e, como preconizado pelo STF. Poucos sabem é que nem todos os estados (felizmente) estão quebrados, como se diz. As dívidas estaduais são fortemente concentradas num único ente, São Paulo, apertado, mas não insolvente. Quanto aos poucos estados cujas dívidas exorbitaram, o valor a ser expurgado de seus débitos por uma TR, autorizada por ;bondade; do julgador, jamais será o caminho de um efetivo ajuste fiscal; pelo contrário, uma porta que autoriza futuras gestões temerárias.

Um cálculo simples demonstra como é vantajoso para a sociedade manter a decisão de afastar a TR em definitivo do papel impossível de ser reposição inflacionária. Basta para isso estimar o potencial destrutivo do acolhimento da TR como indexador. Admitir a TR significará, com probabilidade elevada, gerar uma onda de desconfiança capaz de aumentar o custo de rolagem de toda a dívida pública interna, hoje em R$5 trilhões, em um ponto percentual, no mínimo. Cada 1% de juro custaria cerca de R$ 50 bilhões a mais, por ano, enquanto perdurar a perda de confiança. Ora, se em vez de receber uma bondade indevida e bilionária, os 26 estados e o Distrito Federal postulassem uma repactuação ordenada de suas dívidas, obteríamos efetiva solução financeira para todos a um valor inferior aos R$ 50 bilhões adicionados pela crise de confiança. O recado é claro: fazer o certo, decidir corretamente, custa bem menos para a Nação, cansada de casuísmos, de contas malfeitas e de argumentos falaciosos.

* Paulo Rabello de Castro é economista e autor de mais de 10 títulos, inclusive do best-seller O Mito do Governo Grátis. Presidiu o IBGE, o BNDES e a Academia Internacional de Direito e Economia. Tem Ph.D pela Universidade de Chicago (1975)

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