Economia

Vocação regional pode ser o caminho para economia local decolar

O último capítulo da série mostra como é possível agregar valor à produção e aumentar oportunidades de trabalho e renda mesmo nas atividades econômicas tradicionais

Simone Kafruni
postado em 06/05/2019 06:00
Depois que o marido morreu, Dinha tem de vender compotas para complementar a renda
Cercado pelo vasto verde do cerrado, inúmeras cachoeiras e templos religiosos, o Distrito Federal tem no seu entorno regiões administrativas e municípios que desenvolvem a agropecuária e o turismo ecológico e religioso. Sem perder o foco da vocação regional, cada localidade consegue se reinventar para agregar valor à produção e ampliar as oportunidades de trabalho e renda na periferia.

Para o professor João Baptista Ferreira de Mello, do Instituto de Geografia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), há uma criatividade latente no entorno dos grandes centros urbanos, que fica ainda mais pujante quando direcionada para a vocação regional. ;Eu vejo as periferias com olhar simpático. São ricas em todos os aspectos, desde o urbanístico e paisagístico até o engajamento social e religioso, mas, sobretudo, produtivo;, analisa.

Nas cercanias das metrópoles, há um modo de viver diferente, na opinião do professor. ;A religião é muito presente, com igrejas de todos os credos, que convivem lado a lado. O sentimento de comunidade também me parece maior. Por isso, a pecha não se coaduna com a riqueza que existe na periferia;, sentencia.

Com o maior Produto Interno Bruto (PIB) agropecuário de Minas Gerais e em sexto lugar no ranking nacional, Unaí tem na lavoura, sobretudo de feijão, milho e soja, e na produção leiteira, sua vocação. A inovação, contudo, vem garantindo renda a um número cada vez maior de agricultores do município mineiro.

Dos quase 84 mil habitantes, 30 mil ou 35% trabalham na lavoura e na pecuária, que ocupam 70% do território, segundo a Emater-MG. A produção diária de leite é de 200 mil litros em média, mas, como recebe o produto de municípios vizinhos, chega a 400 mil litros, coletados por cooperativas e que abastecem grandes empresas. Cerca de 12 mil litros ficam para o consumo de Unaí e a fabricação de derivados, como doce de leite, manteiga e vários tipos de queijo.

Produtor rural da Fazenda Macaúbas, localizada próximo à BR-251, Maikel André Pereira, 26 anos, se uniu ao engenheiro de produção Warley Henrique da Silva, 26, para agregar valor à produção de leite, atividade de várias gerações da família. ;Desde 2018, vimos que o leite não estava dando dinheiro. In natura, quase não cobre os custos de produção;, conta Warley.

A opção por derivados foi lógica. ;Além de já ter a produção da matéria-prima, percebemos um nicho de mercado interessante;, explica. Os dois empreendedores investiram em infraestrutura, certificaram a propriedade e, em quatro meses, passaram a produzir queijo. ;Quando a produção de leite da fazenda cai, a gente compra de outros fornecedores;, diz. Logo tiveram retorno, porém, o espaço ficou pequeno. ;Precisamos fazer uma câmara fria para armazenar o produto acabado. Ampliamos o espaço. Também adquirimos uma caldeira para fazer pasteurização, porque o custo com gás estava muito alto;, enumera.

Hoje, o JM Laticínios produz peças de queijo minas padrão, ralado e frescal. Em janeiro, os sócios iniciaram nova reforma. ;Estávamos processando de 80 a 100 litros de leite por semana. Com o maquinário novo, vamos para 350 litros;, diz o produtor. O crescimento foi rápido. A dupla contratou um funcionário e está prestes a empregar outro. A expansão da renda foi significativa. ;Agora, temos poder de barganha no mercado, ganhamos mais tempo de prateleira do produto. Com a agroindústria, diversificamos a produção. No futuro, vamos fabricar iogurte e bebidas lácteas;, destaca.

Doce vida

Depois de ficar viúva, há 24 anos, Maria Piedade de Abreu, 71, dona da fazenda Columbia, de 150 hectares, no distrito de Garapuava, em Unaí, também precisou inovar. A propriedade foi dividida entre os quatro filhos, que tocam a produção de leite, as lavouras de milho e os pés de maracujás.

Com apenas um salário mínimo de pensão e uma conta mensal de R$ 900 de plano de saúde, restou à dona Dinha, como é conhecida, fazer doces para vender. ;Tenho muitas árvores frutíferas, 12 pés só de figo, além da produção de leite do meu filho. Com a matéria-prima, eu faço as compotas. Já vai para 21 anos. Cozinho no início da semana e, às quartas e quintas, trago meu carrinho para o centro da cidade para vender;, conta.

Os doces de leite, de amendoim, de frutas e a famosa ambrosia da Dinha Doces conquistaram uma boa clientela. ;Também faço para casamentos e festas;, diz. Na cidade, chegou a vender 100 potes por semana, a R$ 12 cada, e tinha uma renda líquida de R$ 3,5 mil, tirando os custos. ;Mas essa crise derrubou minhas vendas pela metade;, lamenta.

Diversificar é alternativa

José Aparecido Rodrigues produz ovos no Sítio Capão da Serra

Unaí - Produtores de leite com 4,6 hectares na região do Sapezal, em Unaí, José Aparecido Rodrigues, 55, e a esposa Solange Rodrigues Barbosa, 55, decidiram diversificar. ;Nossa propriedade é pequena e produzia 400 litros por dia. Parei com o leite, porque o preço tem muita volatilidade e falta mão de obra;, conta José. A opção foi investir em ovos de galinhas caipiras, que exigem menos assistência e a família consegue manejar sozinha.

"Ovos são produzidos só por grandes granjas. Então, buscamos o diferencial. Comprei 100 galinhas em 2017. Já passei para 300. O índice de produção subiu de 44% para 88% das aves dando ovos", revela. As galinhas não ficam presas, comem verde e só um pouco de ração no fim do dia. ;O resultado é um ovo caipira maior do que a média, com clara bem densa;, conta.

A aceitação no mercado foi tal que a ideia é aumentar para 600 galinhas, de olho em chegar a mil. ;Estamos terminando a estrutura para isso. Já recebi incentivo para subir para 2 mil a fim de atender à demanda da cidade, porque a procura só aumenta;, assinala.

Com clientes em Unaí e Brasília, José Aparecido diz que a atividade requer muita dedicação. ;É muito serviço. O sistema exige que a gente fique quase o dia todo no galpão. Quando os ovos vão para agroindústria, plastifico por peso, não por tamanho. Depois transporto para cidade. Tenho que entregar em vários supermercados;, explica.

A maior dificuldade, conta, é financeira. ;A gente sabe que tem mercado, quer ampliar, mas fica impedido porque os bancos exigem muita garantia para dar crédito. Os pintinhos são caros. Isso nos obriga a crescer num ritmo muito lento;, lamenta.

Expansão

Mesmo assim, a empresa Ovos Coloniais Sítio Capão da Serra começou a criação de codornas. ;Já produzimos 500 ovos por dia, mas preciso ampliar a infraestrutura porque a aceitação foi ótima;, comemora. José Aparecido diz que a diferença entre os ovos e o leite é enorme: "o leite exige muita mão de obra, trato e ração. A galinha me dá em torno de 50% a 60% de lucro. Quando eu vou vender, o mercado pergunta quanto quero pelo ovo. No caso do leite, só em 40 dias a empresa dizia o valor, porque dependia do mercado."

Diamante lapidado

Michelli Beltrão convenceu o pai a tornar a propriedade rural uma atração turística. Ele trocou a agropecuária pela nova atividade
Formosa ; A transferência da capital federal para o Planalto Central teve um forte impacto em Formosa, que cedeu parte de seu território para formar o Distrito Federal. A centralização em Brasília acabou por transformar o município em uma cidade-dormitório. Na década de 1980, contudo, a chegada de produtores rurais propiciou o desenvolvimento agropecuário, o que impulsionou a prestação de serviços e o comércio.

Atualmente, com uma população estimada em mais de 119 mil habitantes, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Formosa tem no turismo uma vocação potencial graças à beleza natural, que conta com o Salto do Itiquira, a Lagoa Feia, o Buraco das Araras, a Gruta das Andorinhas, a Cachoeira do Indaiá, rampa de voo livre, sítios arqueológicos, várias nascentes e trilhas, entre outras atrações.

Para o secretário de Assuntos Econômicos e Meio Ambiente, Antônio Pimentel, a cidade está prestando mais atenção no potencial turístico. ;O município já foi cidade-dormitório, mas o agronegócio cresceu de uma forma pujante e abafou isso. De uns 12 anos para cá, o comércio e o trade turístico perceberam que existe um diamante que precisa ser lapidado;, diz.

O setor privado, contudo, tomou a iniciativa e começou a lapidar a joia. Empresária do setor, Michelli Beltrão, 28, convenceu o pai, José Beltrão, dono de uma propriedade rural em Formosa, a trocar a agropecuária pelo turismo. ;Não foi fácil, porque o setor tem pouco apoio e ainda falta conscientização da população para explorar o turismo da forma correta;, afirma.

Michelli diz que muitos proprietários rurais empreendem na área de turismo, mas outros tantos que têm atrações em suas terras ainda temem a exploração predatória. ;Além disso, o retorno é mais demorado do que com a agropecuária, mas há bastante procura;, diz. Apesar de relutante, José acreditou na filha e apostou na ideia de transformar a propriedade numa pousada para receber turistas.

A Toca do Dorper, nome dado em alusão à raça de carneiros criada na região, tem capacidade para 50 pessoas, mas recebe grupos de 16 pessoas. ;Temos animais para contemplação, cavalos para passeio, piscina, salão de jogos e acomodações;, enumera Michelli. Os turistas são, principalmente, de Brasília. ;Nossa divulgação é toda nas redes sociais. A diária custa R$ 1,5 mil e o day use, R$ 1 mil. Para passar o fim de semana, são R$ 2,2 mil até 16 pessoas;, conta.

O negócio empolgou José Beltrão, que agora quer investir em chalés, para disponibilizar unidades individuais. Segundo Michelli, o município tem muitas atrações que ainda não são produtos formatados. ;Todos os fins de semana, vários ciclistas vêm fazer trilhas por aqui. Poderíamos ter um produto nesse sentido, mas não temos;, lamenta. ;Temos a vocação turística, mas muito precisa ser feito;, resume.

Demanda crescente
O desenvolvimento dos negócios em Formosa, sobretudo para atender aos turistas, despertou a atenção de Jander Paulo Gomes de Paula, 28, e Camila Calaça Valente, 28, formados em marketing e publicidade, respectivamente. Os dois perceberam que a cidade não tinha uma agência de comunicação local e decidiram apostar no nicho de divulgação dos empreendimentos. ;Ainda estamos em fase experimental, mas já atendemos dois restaurantes;, contam.

Jander explica que a demanda é crescente. ;A nova geração está começando a cuidar dos negócios da família e quer divulgação nas redes. A gente viu um nicho aí, porque só procuravam agências de fora de Formosa;, revela.

A REP, empresa cuja sigla quer dizer Resultado, Estratégia e Planejamento, faz marketing digital, direção de arte e branding, mas ainda não sustenta nem Jander, nem Camila. ;Nós não seguimos a tabela do DF porque é muito alta para o município, por isso temos trabalhos paralelos;, ressalta.

Um contrato mensal com a REP sai R$ 980 para gerenciamento básico. ;Agora, estamos fechando um festival gastronômico, aí o contrato é de R$ 33 mil para quatro meses. Talvez um de nós precise deixar o trabalho fixo até julho. A meta é nós dois ficarmos só na agência até o fim do ano;, estima.

A fé move a economia

Jane Alcântara costura no Vale do Amanhecer

Fundadora do Vale do Amanhecer, Tia Neiva estabeleceu o templo da doutrina em Planaltina há 50 anos, no início da história do Distrito Federal. Católica, começou a ver espíritos aos 33 anos e chegou a pensar que estava louca, conta o neto Jairo Zelaya, Trino Herdeiro Elário. ;Foi a um psiquiatra, mas acabou vendo o espírito do pai do médico durante a consulta;, afirma.

O neto explica que Tia Neiva só aceitou o dom quando viu o espírito de São Francisco de Assis, que a orientou a fundar uma cidade. Em 1959, criou uma comunidade na Serra do Ouro, em Alexânia, e depois a transferiu para Taguatinga. Foi só em 1969 que o templo da doutrina chegou à Planaltina. ;Ela comprou uma fazendinha e, à medida que as pessoas conheciam e queriam se estabelecer, ela doava lotes;, acrescenta.

Assim surgiu uma cidade exclusiva dos médiuns, o Vale do Amanhecer. A doutrina já iniciou mais de 1 milhão de pessoas de têm templos espalhados por todo o mundo. Tia Neiva morreu em 1985 e, em 1990, o governo fez um loteamento próximo ao local, chamado Vila Pacheco. ;Hoje é tudo a mesma coisa, tem comércio e igrejas de outras religiões;, diz Jairo.

Atualmente, são cerca de 30 mil habitantes. A cidade se organizou para receber 12 mil visitantes por mês, tem pousadas, restaurantes e, sobretudo, costureiras, lojas de tecidos e armarinhos. Isso porque a religião se mantém de doações espontâneas e das indumentárias e armas (como são chamados alguns adereços específicos). ;Conforme a pessoa vai avançando na doutrina, vai adquirindo as roupas e os coletes;, diz.

Jairo ressalta que grande parte dos moradores vive de Bolsa Família e de doações, mas muitos trabalham no Distrito Federal. ;Alguns são servidores públicos, como eu, que trabalham no Plano, mas há comerciantes, empresários. O que os faz morar no Vale é o amor à doutrina.;

Chamado
Pernambucana, Jane Alcântara, 59, morou muitos anos no Rio de Janeiro, onde exercia o ofício de costureira. Há sete anos, no entanto, tocada pela doutrina do Vale do Amanhecer, visitou o templo. O que era para ser uma estadia de 15 dias se tornou definitiva. ;A espiritualidade me disse para ficar;, conta.

Adaptar o trabalho à customização da indumentária usada pelos adeptos da doutrina foi fácil. ;Eu já trabalhei para lojas como Taco e C. Então, não tive problemas para aprender. Além disso, costuro para fora, faço consertos, vestidos, o que precisar;, diz. ;Já tivemos dias melhores. Com a crise, o aperto foi grande, o pessoal só estava reformando as roupas. Passei a trabalhar basicamente para pagar as contas, comer e me vestir, porque gosto de andar arrumada;, ressalta.

Jane cobra R$ 850 por uma indumentária completa da doutrina. Para trocar as armas, R$ 70, e reformar um vestido de festa, R$ 70. ;Hoje, tenho clientes até de Portugal, de todo o Brasil, por causa da doutrina. O pessoal de fora encomenda, manda as medidas, eu faço e entrego quando eles vêm para as consagrações ou feriados, como o da Páscoa;, explica.

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